Simone De Oliveira
“Todos temos os nossos jardins secretos”

Famosos

Aos 75 anos, recorda uma vida que nem sempre foi fácil, mas que não trocaria por nada

Qui, 14/11/2013 - 0:00

 Descreve com uma precisão balzaquiana o encontro com Henry Mancini, ou a ocasião em que, em Paris, Amália Rodrigues fez parar o trânsito. A memória de 75 anos de uma vida que dava vários volumes alimenta a mente perpetuamente irrequieta de Simone de Oliveira. “Eu sou a Simone e canto cantigas”, apresenta­ se, a brincar, a imponente mulher que ousou cantar “quem faz um filho fá­ lo por gosto”, em 1969. Mas Simone, que acaba de lançar Força de Viver, é muito mais do que a Desfolhada. Apesar de se definir como cantora, fala da representação com um brilho nos olhos. Lutou contra o destino e contra uma sociedade que não estava preparada para tanta ousadia. Separou­ se, foi mãe duas vezes sem ser casada e, finalmente, conheceu alguém capaz de a apaziguar sem tentar apagar a sua essência. Derrotou o cancro da mama e, durante dois anos, perdeu a voz, mas nem isso a impediu de gritar. E é o que continua a fazer, em cada entrevista, em cada discurso, em cada prémio que recebe.

VIP – Já assinou vários livros autobiográficos, mas pede sempre ajuda, neste caso à Patrícia Reis. Porque é que não escreve?
Simone de Oliveira – Eu não sei escrever­ me. Sei contar histórias, não sou má conversadora, mas contar em nome próprio, não consigo. Mas quando li o livro, revi­ me completamente.

A sua vida cabe num livro?
Com 75 anos, se a vida não me desse matéria­ prima, estava tramada. Acho até que dá para vários livros. Foi uma vida rica de tudo. Coisas muito boas, coisas menos boas, algumas coisas más, mas, de um modo geral, gosto da minha vida. Acho que lutei, dentro das minhas forças, para me salvaguardar de algumas coisas mais amargas, fui tendo a compreensão da minha família, o amparo, o colo… A Patrícia Reis foi lá a casa, tirou os sapatos, comemos chocolate, conversámos muito e foram saindo as minhas memórias.

Tem tanta força como dizem?
Alguma e, quando não tenho, vou à procura. Normalmente, e naturalmente, tenho, mas nem sempre é tão simples. Há momentos na vida em que temos de ir, não digo à loja comprar meio quilo, mas temos de ir dentro de nós à procura de vontade de ir para a frente. Nem sempre é fácil arranjar, nem sempre me foi fácil. Há dias que há onde ir buscar; outros, prefiro ficar sentada à espera que me chegue. Ou peço aos rapazes que me deem força, envio mensagens aos meus netos.

A família é uma fonte de energia?
A família é a minha base absoluta, os que já não estão cá e os que estão.
Fala no livro de alguns episódios que nunca tinha abordado de forma tão direta…
Às vezes, é preciso pôr os “pontos nos is”. As pessoas gostam imenso de falar de coisas que não sabem, que não viveram, numa época onde ir tomar um café era impensável. Havia parâmetros e eu comecei muito cedo a ir contra esses parâmetros. A minha mãe perguntava­ me, de vez em quando, se eu sabia o que queria, e eu dizia ‘eu sei o que não quero’. E continuo a ter esta sensação, de saber o que não quero.

Foi por isso que saiu de casa do seu marido aos 19 anos, dois meses depois de casar?
Sim, sabia que aquele não era o meu sítio. E fui­ me embora. Foi uma decisão que tomei de forma definitiva. Nem sequer olhei para trás. Havia a ideia de que o casamento é até que a morte nos separe, e foi para os meus pais. Tive pais com uma vida maravilhosa, uma infância extraordinária, em que tudo era bom e quando percebi que, afinal, não era assim, não achei graça nenhuma.
E quando bateu à porta dos seus pais, para voltar, não teve um momento de angústia?
Olhando para trás, devo ter tido, mas dentro da minha alma não queria aceitar que os meus pais me pudessem fechar a porta. Se tivesse acontecido, não sei qual teria sido a minha história… nunca parei para pensar sobre isso.

Atravessou, então, um momento depressivo. A música foi a cura para os seus males?
Não foi a cura, foi um caminho que me apareceu sem eu esperar. Nunca me passou pela cabeça ser cantora, ser atriz, escrevinhar, não estava no meu imaginário como está no imaginário das meninas de hoje. Não era comum, não havia televisão.

Mas nessa altura, e nomeadamente quando, pouco depois, foi mãe fora do casamento, tinha noção de que estava a quebrar uma série de convenções sociais, ou simplesmente as coisas foram acontecendo na sua vida?
Nunca tive essa noção. Fui­ me apercebendo disso com o passar do tempo. Eu queria ter aqueles filhos, quem gostou, gostou, quem não gostou foi andando. Claro que as pessoas acharam violento, eu não casei com o pai dos meus filhos, só consegui o divórcio depois do 25 de abril. Achava que era natural ser mãe, não fiz nada para quebrar barreiras, não era para ser diferente. Quis cantar a Desfolhada e cantei. Depois, os insultos, as reações… sabia que era um texto contundente, mas como é que se diz? Dizendo! Simplesmente, estava a ser eu, como tento, ainda hoje. Eu não sou amorosa. Somos todos assim, quando gosto, gosto, quando não gosto… Não somos de coisinhas, mas depois damos um abraço daqueles… Embora, às vezes, quando os meus netos eram pequenos…

Os seus netos amoleceram­ na?
Não, sou incapaz de mudar alguma coisa que os pais tenham dito.

E como foi ser mãe, naquela altura?
Foi um desassossego muito grande. Lembro­ me de dar de mamar à Eduarda dentro da casa de banho da RTP. Ela dormia imenso. Lembro as viagens de comboio, ela gorducha, muito fofa, dormia imenso, e eu a olhar para ela, com aquela preocupação. Foi ótimo! A década de 60 foi uma década fascinante, que não voltou a existir.

Diz no livro que a sua relação com Henrique Mendes acabou com a Desfolhada. Era demais, até para mentes supostamente liberais?
Era um bocadinho. Acho que as pessoas ficaram muito assustadas. Nós vivemos na mesma casa durante sete anos, foi aquilo que é considerado hoje uma união de facto. Foi uma época apaixonante, eu tinha 23 anos, e acabou quando tinha 30. Tem um período muito bem delineado, depois cada um seguiu com a sua vida. Foi uma coisa vivida pelo País inteiro. Houve um conselho de ministros por causa de nós! Foi complicado não só para mim, mas também para os meus filhos. Mas foi muito bonito, acabou quando teve de acabar. Foi um capítulo que fechei há muito tempo.

E quando conheceu o Varela Silva percebeu logo que seria “até que a morte nos separe”?
Nada disso, achei que não queria nada. Não foi de todo um coup de foudre. Foi uma coisa que se foi construindo com o tempo, muito a instância dele. Quando o conheci, estava de luto fechado pela minha mãe, tenho essa imagem na minha memória. A única coisa que me levou a cantar, naquele dia, ainda com uma insegurança muito grande na voz, foi a memória da minha mãe, que nunca mais me voltou a ouvir cantar. E é nessa altura que conheço o Varela. E depois não parou: tantas vezes a cantarinha foi à fonte que, um dia, a cantarinha partiu­ se. Quando começou, as pessoas diziam que não durávamos nem três meses. Durou 23 anos. E, naturalmente, durou até hoje, porque ele já foi embora há 17 anos, mas ainda há uma saudade muito grande. Hoje, sou capaz de falar nisto com uma certa serenidade, mas continua a ser uma imagem muito presente na minha vida, muito aconchegante. Foi uma relação muito forte, durante muitos anos, com altos e baixos, como todas as relações têm, vividos numa casa que é o meu pombal, por ser tão pequena. Foi muito bom, tenho muita saudade. Foi um homem que me deu paz, que me deu uma certa tranquilidade. Eu era uma mulher intranquila, estava tudo à flor da pele.

A morte da sua mãe marcou­ a muito?
A morte da minha mãe foi a primeira grande tragédia da minha vida. Levei anos a aceitar que aquela mulher tinha desaparecido. Tenho tudo na minha memória. Mas a seguir fui para o teatro.
Aprendemos a lidar com a morte à medida que perdemos os nossos entes queridos?
Aprendemos mal. Há uma coisa que se chama tempo, em todos os desgostos. Qualquer que seja o desgosto, o tempo vai­ se encarregando de aplanar. Cada morte que tive na minha vida, tive de aprender a sobreviver sem eles, de outra maneira.

Vive sozinha há 17 anos. Quando chega a casa mantém esse espírito combativo? Nunca se sente só?
Sou igual. Se estou bem-disposta, continuo bem disposta. Gosto de ver televisão, de ouvir música. Há uma cantiga do Gilbert Bécaud que diz: “La solitude ça n’existe pas”. Há uma solidão que faz parte de mim, natural das pessoas que têm a minha idade, mas eu combato isso com ferocidade. Escrevendo, lendo, ouvindo música… quando estou menos bem, ouço música. Bécaud, Aznavour, Camané… Gosto de ouvir fado bem cantado.

Passou por vários momentos difíceis, mas acaba por falar deles a posteriori. O cancro da mama, por exemplo…
Eu não falei naquela altura porque detesto aquele tratamento. Falei seis anos depois, quando o Herman me perguntou em direto e achei que tinha de falar. Passei pelas coisas, dou a ajuda que puder, mas não faço disso bandeira. Não deixei de trabalhar para fazer radioterapia, sei que visto de fora parece uma loucura. Quando vivo as coisas, levo tudo à frente. Depois, quando resumo tudo, às vezes dá­ me um cansaço e, de repente, apetecia­ me que me levassem ao colo, que o jantar estivesse feito…

Assusta­ a envelhecer?
Há aquelas doenças, o Alzheimer, a perda das capacidades mentais, Deus me defenda disso. A limitação física… ponho um joelho novo, uma anca nova, e já está. A cabeça é outra coisa. Até hoje, que eu tenha dado por isso, e há pessoas avisadas para me avisarem quando eu emparvecer, acho que está tudo bem! Está a ver? Levo tudo para a parvoeira e depois ninguém me leva a sério!

O Varela era o Dramas, a Simone a Cantigas. Eram as vossas alcunhas. Que música vai na sua alma, por esta altura?
Vai a cantiga de esperança que este País melhore, que se tenha em conta esta precariedade da qual faço parte, de solidariedade com a gente miúda que, neste momento, está a passar mal.
Tem assumido uma posição crítica em relação à precariedade dos atores, às reformas…
Tenho, porque há coisas que não posso aceitar. As pensões vitalícias dos políticos, por exemplo. Eu sei que ser político deve ser complicado, mas nunca vi um político pobre. Já vi atores pobres, pintores pobres, músicos pobres… gostava de encontrar políticos pobres, a viver com 350 euros.

Tem­ se queixado da falta de trabalho. Faz novelas por gosto ou por necessidade?
Eu gosto muito de fazer novelas. Houve alguns projetos que adorei, as câmaras não me assustam. Todos trabalhamos por gosto e por necessidade, ninguém vive sem dinheiro. As nossas reformas são o que são e a vida tem de continuar. É continuar a trabalhar, com critério de escolha, se for possível, fazendo ginástica com as finanças. Eu tenho a minha reforma, tenho a pensão de viuvez do Varela e não vou sofrer os cortes porque as minhas pensões nem chegam ao valor a partir do qual cortam.
Que bom não ter uma pensão maior!

Não ter papas na língua é uma chatice?
São duas chatices! A chatice de dizer e depois a chatice de pensar que não devia ter dito! Mas é engraçado, porque a geração mais nova tem um certo apreço por mim e acho que não é por saber o que eu cantei. Acho que é por isso, por questionar as coisas. E depois, se me explicassem, talvez sossegasse, mas não me dão respostas! O preservativo é pecado? Onde é que isso está escrito? Começo a ferver! Mas devo admitir que, quando começo a ver a aflição deles, me dá algum gozo! Nós tivemos um cardeal patriarca, com quem toda a gente disse que eu tinha um caso, e eu estava sempre a fazer­ lhe perguntas difíceis.

Houve muitos boatos sobre as relações que terá tido. Como diz o provérbio popular, teve “mais fama que proveito”?
Se tivesse tido todos os casos que me atribuíram, não tinha tempo para fazer mais nada! Houve ali uma fase em que, se chovia, eu tinha culpa; se fizesse sol, a culpa também era minha! Nessa altura, cansou­ me bastante. Felizmente, passou.

Diz que existem várias Simones: a Simone antes de casar, a Simone que foi mãe, a Simone que perde a mãe. A Simone de hoje, quem é?
É uma mistura delas todas, senão não tinha chegado até aqui. A Simone que existe, que está aqui à sua frente, é um conjunto de mulheres que passaram por mim. De algumas gostei, de outras nem tanto, mas nunca quis ser outra pessoa. Não andei ao sabor das ondas, não sei se fui eu que escolhi a vida, se foi a vida me deu estes caminhos e fui escolhendo o melhor que sabia. Nem sempre terei escolhido o mais certo, mas escolhi aquilo que, para mim, era certo naquela altura. Todos temos essas coisas, não digo os nossos segredos, mas, como diria o Varela, temos os nossos jardins secretos, que não são para partilhar com ninguém, nem com a almofada.

Texto: Elizabete Agostinho; Fotos: José Manuel Marques, Impala e DR; Produção: Elisabete Guerreiro e Manuel Medeiro; Cabelo e maquilhagem: Vanda Pimentel, com produtos Maybelline e L’Oréal Professionnel

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