Representar este personagem foi o culminar de uma longa jornada que começou aos sete anos, quando viu a mãe, a atriz de teatro musical, Kate McCauley no papel de Fantine. “A minha mãe foi uma Fantine maravilhosa. Não tenho palavras para descrever o que senti quando a vi, mas sei que naquela noite decidi que queria ser atriz.” Por isso, quando soube que iria haver uma versão cinematográfica do musical, Anne Hathaway fez tudo para conseguir um papel. “Nunca presumi que conseguiria o de Fantine. Os produtores no início não foram muito recetivos porque achavam que não tinha a idade adequada para a personagem, mas eu disse ao meu agente que apenas queria fazer uma audição e cantar uma das músicas e que depois poderiam encaixar-me em qualquer papel. Queria apenas fazer parte do filme!”, recorda.
A atriz, que conquistou a simpatia do público como protagonista de Os Diários da Princesa ou Ella Encantada e se consagrou em O Diabo Veste Prada, BrokeBack Mountain, O Casamento de Rachel ou A Juventude de Jane, impressionou o realizador, Tom Hooper e, ao lado de Hugh Jackman e Russell Crowe, interpreta a trágica heroína do épico de Victor Hugo que lhe traçou o destino.
Após ter sido injustamente despedida da fábrica onde trabalhava, Fantine recorre à prostituição para sustentar a filha ilegítima. Doente com tuberculose, o seu caminho cruza-se com o de Jean Valjean, um ex-prisioneiro injustamente condenado a 20 anos de prisão por ter roubado um pedaço de pão.
VIP – Quais são as recordações que retém do tempo em que sua mãe interpretou Fantine?
Anne Hathaway – Lembro-me que senti logo uma grande empatia pelos Os Miseráveis. A minha mãe era a substituta da atriz que representava Fantine, mas nesse dia conseguiu o papel. Vê-la representar a personagem, que passa por tanto na vida foi incrível e tornou a história muito real para mim. Senti uma grande ligação com todos os personagens, apesar de ter apenas sete anos.
Como foi ver a sua mãe encarnar um papel tão trágico?
Já a tinha visto morrer antes, quando interpretou o papel de Evita Peron, mas vê-la como Fantine foi muito mais emotivo. Compreendi que não estava realmente a morrer, mas ver Fantine no palco a cantar para a filha fez-me sentir como se ela estivesse a cantar para mim. Por isso, foi muito doloroso para mim vê-la morrer em palco. Mal sabia eu que anos mais tarde iria representar o mesmo papel. Fazer parte desta extraordinária produção do Tom Hooper parece um ato do destino.
Tom Hooper diz que a audição foi extraordinária. O que aconteceu?
Conheci o Tom Hooper quando ganhou o Óscar pelo filme O Discurso do Rei, porque eu estava a apresentar a cerimónia nesse ano (2010). Na audição, cantei I Dreamed a Dream e estava sempre a tentar perceber a reação de quem estava a ver. O Tom estava a chorar. Disse-me que a canção nunca antes o tinha feito chorar e interpretei isso como um bom sinal. Depois pensei que talvez fosse o tipo de pessoa que chora por tudo (risos). Cantei mais dois temas, incluindo o da morte de Fantine, sem os ter preparado. Correu muito bem, mas quando saí desatei a chorar na rua. Foi muito intenso, mas senti que tinha tudo a meu favor. Um mês mais tarde soube que tinha conseguido o papel.
Como abordou a personagem?
Não a vejo como uma vítima, porque tudo o que faz, fá-lo pela filha. Desliga a sua capacidade para amar e substitui esse amor por raiva, dor e ódio. Mas o que Victor Hugo diz é que ela mantém uma parte do seu coração vivo pela filha o que acaba por dar-lhe força.
Que pesquisa fez para a encarnar?
Fiz muita pesquisa sobre a vida das prostitutas e das escravas sexuais da época contemporânea. Há mulheres em todo o mundo que fazem o que Fantine faz pela filha e todas preferiam morrer a tornarem-se prostitutas, mas acabam por cair nessa vida porque têm de alimentar os filhos. Não sou mãe, mas compreendo. Não têm como fugir da situação em que estão, ouvir as histórias delas foi muito chocante. Senti que tinha que prestar justiça e ser fiel à realidade do sofrimento destas mulheres.
É fácil criar empatia com Fantine?
Tenho consciência que existe uma grande diferença entre mim e a personagem. Tenho uma boa casa e um marido maravilhoso. Levo uma vida privilegiada rodeada de amor e não consigo sequer imaginar como será ter uma vida como a da Fantine, mas consigo compreender o sofrimento pelo qual ela e todas as outras mulheres passam.
O filme é diferente de todos os outros musicais, na medida em que todas as canções foram gravadas ao vivo. Foi um desafio?
Foi muito trabalhoso, mas papéis como o de Fantine são raros. Tive de trabalhar muito a minha estamina vocal. Esforcei-me para traduzir tudo o que adoro do teatro musical para a linguagem do cinema. Senti-me muito vulnerável em expor o meu lado mais doloroso a cantar. A música transporta-te para onde as palavras não conseguem. É esta a beleza da música. Sentir essa parte da nossa alma e o nosso instrumento vocal ganhar vida foi uma sensação incrível.
Perdeu cerca de 13 quilos para interpretar o papel. Como foi?
Não quero falar no método que utilizei por termos tantos sentimentos de culpa e vergonha em relação à comida, faz parte da nossa condição de ocidentais. Perdi inicialmente cinco quilos para preparar o meu organismo. Todos os dias eram marcados por restrições alimentares e praticava exercício físico, mas esta perda de peso foi especificamente para desempenhar um papel em que devia parecer estar a morrer.
Porque achou essencial perder tanto peso?
Aprendi muito quando filmei o Cavaleiro das Trevas Renasce. O Christopher Nolan pediu-me para fazer todas as cenas de ação. Treinei seis meses para uma cena de luta que dura um minuto. Mas passei a compreender muito melhor a personagem, porque entrei dentro da pele dela.
Está contente com o seu peso atual?
Não estou tão contente como quando filmei o Cavaleiro das Trevas Renasce, porque estava mais forte e tonificada, mas sinto-me bem.
Como foi trabalhar com Hugh Jackman?
O Hugh e eu sempre quisemos fazer qualquer coisa ligada à música. A nossa participação não foi planeada, simplesmente aconteceu e ainda bem. É adorável. É uma das pessoas mais fortes que conheço, mas possui um toque suave. Leva tudo muito a sério e entrega-se 100% a tudo o que faz. É um prazer estar na companhia dele. É um ator e cantor maravilhoso e adoraria trabalhar com ele novamente. Foi também fantástico trabalhar com o Russell Crowe. São ambos homens sensíveis e generosos. Tive muita sorte.
Segundo consta, o Russell Crowe organizava festas à sexta-feira, onde toda a gente cantava. Deve ter sido muito divertido.
Ele convidava-nos para a casa que tinha alugado perto do hotel e cozinhava bifes para todos. Passava a vida a meter-se comigo por ser vegetariana, mas fazia-me umas saladas fantásticas. Depois do jantar, íamos para outra sala, alguém sentava-se ao piano e começávamos a cantar. Era muito relaxante.
Vemos o seu cabelo ser cortado no filme. Como foi a experiência?
Eu tinha o cabelo muito comprido, aliás nunca o tinha tido tão comprido na vida e propus ao Tom cortá-lo no filme. Achei que era o que tinha de fazer. Fiquei um pouco apreensiva, mas portei-me estoicamente até ao dia em que o cortei. Tirei muitas fotos dele comprido porque queria ficar com uma recordação. No próprio dia não queria fazê–lo, mas não sou rapariga de voltar atrás nas promessas e também já não havia tempo para fazer uma peruca curta. Estava muito assustada e tremia, mas usei isso tudo para compor a personagem, por isso, acabou por ser uma bênção.
Como é que ganhou forças para fazer a cena?
O Tom disse que não ia começar a filmar a cena do corte sem eu dar o sim, porque depois não havia volta a dar. Lembro-me de estar sentada com três câmaras diante de mim e a Nicola Sloane (a atriz que faz o papel da fabricante de perucas) agarrou no meu cabelo. Senti a lâmina a cortar as primeiras madeixas e continuou durante três minutos. Levantei a mão para tocá-lo e já não existia. A Fantine também vende os dentes e não arranquei nenhum dos meus! Fizemos uma pausa e fiquei sentada, meia careca. Quando terminámos, não pude deixar de sentir uma sensação de falta. Isto foi em abril. Desde então, uso-o curto. Se não estamos preparados para cortar o cabelo, perder peso e fazer figura de idiota a cantar, é porque o papel não nos tocou fundo.
Gosta de usar o cabelo curto?
Gosto e não gosto. Sempre gostei de não perder muito tempo a arranjar-me e agora não perco tempo mesmo. Houve dias em que olhava para a Amanda (Seyfried) e tudo aquilo que ela podia fazer com o cabelo e sentia uma certa nostalgia. Mas adoro estar divorciada da minha vaidade e desafiar a minha identidade.
Como é a sua vida?
Tenho 30 anos e consegui! Já passei a década dos 20 e estou muito grata porque gosto muito do momento que estou a viver. Acho que cheguei aos 30 anos com a melhor parte da minha identidade intacta. Agora quero continuar a crescer. Sempre pensei que os 30 iriam ser um ponto de viragem um pouco negativo, mas a verdade é que muitos amigos renasceram para a vida depois dos 30. Descobri recentemente um novo gosto pela vida e sei que não podemos dar nada como adquirido. Conheci muitas pessoas graças ao meu trabalho e passei pelas experiências mais incríveis. Sou uma sortuda. Este tem sido o melhor ano da minha vida.
Fotos: Reuters
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