A personalidade forte e a postura política valeram-lhe o epíteto de dama-de- -ferro e a ex-autarca nunca perdeu a determinação ao longo daquele que foi um dos mais mediáticos processos judiciais de Portugal. Fátima Felgueiras dispensa apresentações, mas merece uma breve retrospetiva.
Licenciada em filologia germânica, estreou-se na política local em Felgueiras, onde fora colocada para dar aulas, pouco depois do 25 de abril. Casou com Oliveira e Sousa, com quem teve os dois filhos, a jornalista Sandra Felgueiras e o filho mais novo, João. Foi eleita presidente da câmara de Felgueiras em 1997 e, após uma denúncia anónima, foi constituída arguida e julgada por peculato, abuso de poder, participação económica em negócio e corrupção.
Voltou a ganhar as eleições autárquicas em 2001 e em 2005, nestas últimas como candidata independente, e perdeu em 2009 para o atual presidente, o social-democrata Inácio Ribeiro. Dez anos depois, viria a ser absolvida de todos os crimes. Em 2013, preferiu acompanhar o nascimento da primeira neta do que ponderar, sequer, integrar as listas para as eleições autárquicas. Mas não fecha a porta a um regresso ao palco da política local, se voltar a sentir motivação. Aos 57 anos, aceitou dar uma entrevista exclusiva à VIP, mas prefere falar do futuro do que relembrar um passado que deixou mágoas e marcou a sua família de forma indelével.
VIP – A sua neta tem sido, indubitavelmente, o centro da sua vida…
Fátima Felgueiras – A minha neta foi muito desejada pela mãe, mas também pela avó. Tem sido uma experiência excecional. É indescritível. É linda de morrer e é uma menina muito doce, que quer toda a atenção do mundo. Qualquer evolução da Sara é uma magia para mim.
Acompanhou de perto a gravidez?
Julgo que acompanhei todos os momentos. É sempre difícil para uma mãe de primeira viagem e eu recordo que senti imensa insegurança. Portanto, admiti que a minha filha pudesse ter os mesmos sentimentos e tenho procurado estar presente, na medida do possível e das necessidades da Sandra. A Sandra foi a minha primeira filha, foi uma experiência extraordinária, uma entrega total. Ela sempre me disse que, quando fosse mãe, tinha de ter tempo para ser mãe. Tendo em conta que a sua vida profissional é muito exigente, estou pronta para ajudar no que for necessário. Mas a Sandra tem a sua organização própria e se decidiu ter a Sara nesta altura é porque tem tudo organizado.
Foi mãe aos 21 anos. Era um dos seus objetivos de vida?
Julgo que é expectativa de quase todas as mulheres. Casei cedo, fui mãe nova. Nessa altura, terminada a faculdade, construía-se a vida. Não estou arrependida, procurei estar presente na vida deles, queria ser a melhor mãe do mundo.
Era professora e entrou na assembleia municipal, quando a Sandra era bebé…
Em Felgueiras, onde poucos éramos os que regressávamos da faculdade, insistentemente recebia apelos para colaborar na política autárquica. Enquanto os meus filhos eram pequenos, fui acedendo à participação na assembleia municipal, mas nunca aceitei nenhum cargo a nível executivo.
Como cresceu o “bichinho” da política?
Apanhei o 25 de Abril quando estava a terminar a Licenciatura em Coimbra e foi um período de grande euforia. Concorri para dar aulas e regressei a Felgueiras, onde o fervilhar da política era o que animava a cidade que, na altura, nem cidade era. O doutor Machado Matos convidou-me nas primeiras eleições e foi com ele que me motivei para a política e aprendi a estar na política de forma nobre. Quando surge o apelo para integrar a assembleia municipal, entendi que conseguia conciliar isso com a maternidade, com a profissão. Na altura já tinha participado na criação da associação cultural de Felgueiras, era uma jovem cheia de energia, num período em que a esperança de dias melhores era atómica.
Ganhou o epíteto de dama-de-ferro. A que acha que isso se deve?
De ferro acho que não tenho nada. Sou muito humana, mas compreendo que tenham procurado essa denominação pela determinação e a firmeza com que sempre me dediquei às causas de Felgueiras. Por isso, se estabeleceu uma relação extraordinariamente bonita com o povo de Felgueiras, que ainda hoje se mantém.
Nunca teve expectativas de saltar do poder local para o nacional?
Acho que não. Entrei na intervenção política pela generosidade das pessoas que me foram convidando e pela vontade de serviço que sempre esteve presente na minha família e continuo a participar em várias instituições.
Quando surgiu a denúncia anónima, em 2000, o que pensou?
Aquilo que sempre pensei. Invejas, táticas partidárias e pessoas que acham que a política é um trampolim para resolver os seus problemas de vida. Eu nunca vivi da política. Para mim, participação política significa servir os outros. Mas há muita gente que está lá porque, fora da política, não é nada.
Quando foi constituída arguida, achou que o processo iria demorar tanto tempo?
Sempre achei que seria fácil apurar a verdade. Nunca imaginei ter de andar dez anos à espera que fosse feita justiça. Mas, ao fim de dez anos, fui totalmente absolvida. Ficou provado que tudo o que disseram era mentira. Socialmente, sinto-me redimida. Afinal, a minha verdade era a única verdade.
Sentiu-se injustiçada?
Sinto que a inveja levou a que quisessem impedir- me de prosseguir uma carreira extraordinariamente importante para Felgueiras. Quando se é muito dedicado há sempre lugar a invejas e ambições e, quem não é capaz, procura seguir outros caminhos para atingir objetivos. Fui maltratada num processo em que alguns não olharam a meios para atingir fins e, quando viram que no combate político não conseguiriam vencer, acharam que instigando a Justiça talvez conseguissem. E foram bem-sucedidos, por conseguirem criar uma enorme confusão. Provou-se que não havia motivo para me levarem às barras do tribunal, senão o facto de eu me entregar de alma e coração.
Sente que lhe cortaram as “asas para voar”?
Fazemos o que as circunstâncias nos permitem e considero que contribuí de forma decisiva para o desenvolvimento da minha terra. Agora, estou a voltar-me para mim própria. Muitas vezes deixei de fazer as coisas de que gostava e que hoje faço com enorme satisfação.
É possível fazer política de forma transparente? Encontrar um único político que nunca tenha usado os recursos que tem à sua disposição em benefício próprio?
Respondi a essas questões em tempo oportuno, é uma questão que não vale a pensa aprofundar aqui. A minha vida política foi sempre completamente transparente, foi uma atuação séria, honesta, e é possível ter essa atuação. Não podemos é entrar em exageros e falsas moralidades em que alguns, por táticas partidárias, resolvem entrar. É isso que estabelece uma relação de desconfiança entre as pessoas e os partidos políticos.
Foi para o Brasil porque queria defender-se em liberdade. Sentiu que estava a fugir?
Não, senti que a verdade tinha de ser clarificada. O tempo todo que estive no Brasil não pensava noutra coisa que não fosse voltar a Portugal. Portanto, não usufruí de nada do que o Rio de Janeiro oferece. Agora, tenho saudades e, sempre que posso, vou lá. O tempo que a minha família sofreu comigo é para esquecer. Agora, vamos viver intensamente aquele que ainda temos.
Em termos financeiros, o que implica estar na barra dos tribunais durante dez anos?
É um prejuízo que não tem quantificação possível, do ponto de vista psicológico, social e financeiro. Demorou, mas fez-se justiça. Essa é a maior compensação.
O facto de a sua filha estar sempre do seu lado deu-lhe força?
Todos os que nos são próximos nos conhecem. Foi muito reconfortante ver que as pessoas de Felgueiras estiveram comigo e com os meus filhos foi, por acrescidas razões, exatamente igual. Sofreram, mas estiveram comigo, naturalmente. Foi reeleita em 2001, ainda pelo partido socialista, e em 2005, como independente.
Foi motivo de orgulho?
Estive na política porque sentia que era essa a vontade das pessoas. Creio que tinham a convicção de que eu resolvia os problemas ou, pelo menos, que fazia por isso. Acho que não há nenhum político em Portugal que tenha vivido experiência mais genuína, do ponto de vista político, do que a que se viveu em Felgueiras, nessa altura. Em 2005, foram as pessoas que insistiram para que fosse candidata. Eu apenas acedi a apresentar uma candidatura independente quando, praticamente, ainda não existiam.
Por outro lado, o facto do poder central lhe retirar confiança política foi uma desilusão?
Os partidos políticos têm-se afastado das pessoas e não é possível governar afastado do pulsar das pessoas. O que se passou foi isso: por táticas partidárias interessava mais de outra forma e afastaram- se da vontade dos felgueirenses. O tempo tem vindo a ditar que, afinal, eu até tinha razão.
O PS praticamente desapareceu do palco político de Felgueiras. Isso traz-lhe algum tipo de satisfação?
Confesso que me traz, sobretudo, apreensão, porque sei que as pessoas em Felgueiras não se sentem bem, que as coisas do ponto de vista político podiam, e deviam, tomar outro rumo. É uma pena e espero que vá correndo pelo melhor. Continuo a responder a solicitações, quando posso, e continuo a ser a mesma pessoa, hoje mais leve e disponível para a família do que estive no passado.
Teve receio, principalmente sendo a Sandra jornalista, que isso afetasse a vida dela?
Não é a questão de ter receio, nós temos a certeza que assim é. Ninguém pense que não sofremos que chegasse e sobrasse. Disso, muitos sentirão remorsos e acho bem que os sintam, porque o que fizeram foi mau demais, não se faz a ninguém, muito menos a uma pessoa que a única coisa que fez foi dedicar-se à sua terra de alma e coração. Isto foi mau demais para a minha família, para os meus filhos, para mim, para os meus amigos. Sobretudo os meus filhos, não mereciam, nem merecem, que se continue a lembrar um episódio que há que esquecer, que é o que procuro fazer. Tenho a minha consciência tranquila, sou uma pessoa de bem como sempre fui, procuro não guardar mágoas porque gosto de estar bem como o meu coração, mas se as quisesse lembrar teria tantas! Pelo menos, que o mal que fizeram comigo não se repita e que a minha neta nunca ouça falar disto. Eu sempre defendi os meus com alma e coração, defendi a terra que servi, a minha família, os meus filhos.
Tem uma relação muito próxima com eles?
Sim, o meu filho está comigo agora, mas prefere estar no Brasil, está a tentar, como tantos outros, arranjar um futuro e arranjar condições para regressar ao Brasil. Quanto à Sandra, podem dizer que sou subjetiva, mas julgo que é um ótima profissional, extraordinariamente exigente. Sou uma mãe extraordinariamente orgulhosa.
Falámos da Fátima política, da Fátima mãe, que é feito da Fátima mulher?
Fui sempre uma mulher de entrega total. Durante a minha vida política, sempre me fui esquecendo de mim. Hoje, tenho tempo para me dedicar a mim própria e isso satisfaz-me bastante. Acho que tinha o direito de me dar esse tempo porque a vida autárquica, para quem a quer viver de forma intensa, como eu, é uma vida de preocupações. Teve um único casamento que não resultou. A relação foi vítima da vida autárquica? Não sei. Casei muito cedo, porventura as circunstâncias da vida levam-nos a ter opções que nem sempre permitem conciliar a vida de casada e a vida autárquica, mas essa é uma situação que também surge em muitas famílias. É complicado quando a emancipação da mulher não é apenas nos movimentos feministas e tem o seu preço. Julgo que, para todas as mulheres, seria muito difícil conciliar uma vida a dois, com uma família e com o desempenho que a vida política exige. Tem saudades de ter alguém ao seu lado? Tenho a minha família, os meus filhos, a minha neta, os meus amigos, uma vida social muito agradável, portanto, estou preenchida. Sou hoje uma pessoa mais leve, mais feliz e tranquila. Tinha sempre muito trabalho, deitava-me tardíssimo, dormia pouquíssimo, hoje não tenho essas preocupações. Não se arrepende de nada? Não me arrependo nada do que sou e do que fiz. Fiz sempre tudo certo e a prova é o facto de ter sido integralmente absolvida. Independentemente das pressões que foram exercidas sobre a Justiça, não conseguiram apontar uma única situação que me pudesse condenar. Eu estava segura de que tinham de ser aquelas as decisões a tomar, quando as tomei. Não pondera o regresso à vida política? A vida política, neste momento, não me motiva, o que não significa que a atividade deixe de me motivar. Continuo a participar e a colaborar. Neste momento, o que me motiva é viver um pouco mais para mim, mas pode ser que estes tempos menos convidativos passem e, quem sabe, no futuro, haja de novo motivação para participar no combate político. É tudo uma questão de prioridades e as minhas foram mudando. A política, hoje, não é um exercício tão aliciante como a senti e, portanto, este é o momento de priorizar as necessidades da minha família, o que não quer dizer que deixe de ser atenta e de estar disponível. Não podemos dizer “nunca mais”. Neste momento, sou uma pessoa desmotivada a nível autárquico, mas não sei o que as circunstâncias vão ditar no futuro. Nunca fui de virar costas a desafios, sempre os aceitei e lutei para os ganhar.
Texto: Elizabete Agostinho; Fotos: Bruno Peres; Produção: Romão Correia; Maquilhagem e cabelos: Vanda Pimentel com produtos Maybeline e L’Oréal Professionnel
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