“Não era para ter nascido em 1999, mas foi quando nasci, logo depois do meio-dia de 17 de dezembro…”. Assim começa a história de Rita Bulhosa, dois meses antes do previsto. Seis meses depois, e ainda por determinar o que terá acontecido, os pais de Rita, Paula e Mário Augusto, começaram a perceber que algo não estava bem. “Achava que era molengona”, diz o conhecido jornalista especializado em cinema. O diagnóstico não era tão inócuo. “Se ela não se levanta, não se senta… talvez seja um quadro de paralisia cerebral.”
Com 15 anos, Rita ainda tem dificuldades em levantar-se, mas a caminhada já vai longa, mesmo com a ajuda de um andarilho, cadeira de rodas ou, quando se sente mais atrevida, canadianas. Pela mão do pai que, dia 4 de junho de 2013, a desafiou a escrever um texto sobre o passeio que acabavam de fazer juntos, descobriu o prazer da escrita. Pouco depois, criava uma página de Facebook que já tem mais de 16 mil seguidores, e agora lança o livro Aos Olhos da Rita – Como Sinto e Vivo a Paralisia Cerebral, onde retrata um caminho que nem sempre é fácil, mas que está marcado pelo espírito positivo que os pais lhe incutiram e pelo apoio e proteção dos irmãos, Francisco, de 23 anos, e Rodrigo, de 13.
Começou a gostar de escrever e agora não consegue parar. “Tinha de ter uma maneira de me expressar e foi na escrita que surgiu. Ao mesmo tempo achei que podia ajudar outras pessoas que estão a passar pela adolescência e queria partilhar a forma como vivo a paralisia cerebral e explicar que sou uma adolescente igual às outras”, explica à VIP.
No entanto, apesar de ser uma adolescente igual às outras, tem de lutar contra a lesão que lhe provocou diplegia espástica, as dolorosas injeções de toxina botulínica, fisioterapia, cirurgias e a dificuldade de locomoção. Além disso, há a luta contra uma sociedade que ainda não aceita a diferença. “A diferença é normal, todos nós temos diferenças, no caso da paralisia cerebral parece que a sociedade tem uma capa. Não sabem como reagir, uma parte só consegue reagir na base de ‘ai, coitadinha’, outra parte exclui-nos. É preciso muito trabalho para mudar essa mentalidade. Tenho alguns amigos, mas é raro ser convidada para sair, para festas de aniversário. Não culpo as pessoas, acho que é próprio dessa fase, os adolescentes não perdem um bocadinho de tempo para me compreender, acabo por ter mais amigos adultos”, explica Rita.
Nada que a impeça de ser alegre. “Nunca fiquei revoltada e ainda bem. Sei que vou ter de dar injeções, que tenho dor, mas se é para melhorar tem de ser. Toda a gente tem dias menos bons, mas regra geral sou bem-disposta e os meus pais têm um papel fundamental nisso.” E acreditam, sobretudo, que Rita é capaz de tudo aquilo a que se propuser. “Sabem que consigo e acreditam em mim, sempre me encorajaram a fazer aquilo que gosto. Por exemplo, nesta aventura da escrita acreditaram em mim desde o início e deixam-me percorrer o meu caminho. Acho que os meus irmãos são até mais protetores que eles. O meu irmão mais novo é o meu companheiro, conversamos muito, o meu irmão mais velho leva-me aos concertos. Tenho anticorpos, eles não têm tanto”, explica.
O papel de Mário Augusto
Foi ele que desafiou a filha a escrever e foi ele que a expôs, com o apoio da mulher, para sensibilizar a sociedade e como espécie de “vacina”. Em 2005, cedeu os direitos de autor do livro Nos Bastidores de Hollywood, e apresentou Rita ao mundo.
“Ela é uma espécie de figura pública na área da paralisia cerebral, sempre a expusemos muito, até como forma de se libertar”, explica, satisfeito com o resultado. “Do ponto de vista coletivo acho que funcionou em pleno porque a paralisia cerebral passou a ser mais discutida, há muito desconhecimento, pensa-se que há atraso quando é uma questão neurológica. No caso da Rita, cresceu com este à vontade. É determinada, risonha, mas como todos nós tem momentos em que se vai mais abaixo.”
Mário Augusto diz que é muito otimista e portanto nunca viu o diagnóstico como uma sentença. Claro que houve adaptações familiares. Paula demitiu-se e reorientou a vida profissional para passar mais tempo em Espinho, onde a família assentou arraiais. A casa foi adaptada para que Rita se possa deslocar de forma autónoma e os primeiros anos foram dedicados a encontrar as terapias adequadas para potenciar ao máximo o seu desenvolvimento motor. “Sou dali, vivi lá a vida toda, ir a Lisboa são duas horas e um quarto, temos ali os meus pais, a Rita tem uma relação muito forte com a minha irmã, os miúdos demoram cinco minutos a chegar à escola, prefiro ter o sacrifício de fazer as viagens e saber que estão ali em total tranquilidade”, explica o jornalista.
“Nós não sabíamos qual seria a evolução dela, hoje tem 15 anos e se calhar a evolução em termos motores não foi a que gostaríamos, mas acabou por arranjar outros escapes”, explica, orgulhoso pelo feedback que a filha recebe dos milhares de leitores. Conta que encontrou há tempos a médica que fez o diagnóstico e percebeu que talvez o mais importante não seja ela conseguir andar. “Sou muito positivo em relação a tudo, portanto sempre achámos que ia ter a sua evolução. Até agora não recuperou, mas como explico no livro, há tempos, cruzei-me com a médica que diagnosticou a Rita e ela disse que há imensa gente que lhe fala dos textos da Ritinha. Como reagir a isto? Ela andar não é o mais importante, o mais importante é ela ser feliz. Se há ali um milagre é ela mesmo, não tem de ser ela correr”, garante, acrescentando: “Ela pode fazer o que quiser e tem de se adaptar para conseguir. Nós vamos ajudá-la sempre. Acho que ela tem uma capacidade de sonhar que está para além do normal, mas com uma clarividência em relação às suas limitações que também a farão optar pelas coisas que achar certas.” No entanto, admite que incentiva a filha a conseguir andar de canadianas para ter maior autonomia. “A única coisa que gostava era que andasse de canadianas, sente-se insegura, mas acho que é uma coisa que vai conseguir ultrapassar, é como aprender a nadar, tem de ganhar confiança, acho que quando tiver essa liberdade ninguém a para!”
Coração de mãe
Discreta, na retaguarda, está Paula Bulhosa, talvez menos otimista que o marido, mas sempre atenta às necessidade da filha que admira pela “enorme tolerância à dor”, pela capacidade de “sofrer sem se queixar muito” numa “caminhada longa, com muitos obstáculos”. É mais difícil para ela, a “heroína”, a “rainha sem coroa”, como a descreve Rita. “No início, todas as mães lidam mal, é um choque, depois cabe-nos tentar dar a volta, porque se não conseguirmos, elas também não conseguem evoluir e convém melhorar todo o potencial até aos três anos porque é nessa fase que a criança mais se desenvolve. E depois estar lá, sempre, porque precisam de apoio a nível psicológico, das terapias, das cirurgias que têm de fazer ao longo da vida.”
Acabou por desistir do emprego no departamento de relações-públicas da RTP, onde trabalhava por turnos, para acompanhar a Rita e trabalha por conta própria. “Tínhamos outro filho, portanto era necessário que um de nós tivesse mais tempo, mas não dou como tempo perdido a qualidade de vida que dei à Rita, porque se não tivesse tomado essa opção ela não teria evoluído como evoluiu e eu não era a pessoa que sou hoje”, diz.
Entretanto, com os direitos de autor cedidos pelo marido, criou em 2010 a associação O Sorriso da Rita, para sensibilizar as pessoas para a diferença e para a inclusão social de pessoas com paralisia cerebral, ajudando exclusivamente pais que têm dificuldades financeiras na adaptação da casa, ajuda técnica, entrega de livros, computadores adaptados ou pagamento de propinas. Acha que a filha tem “uma cabeça muito bem estruturada” e não quer decidir por ela o caminho a seguir. “Não sei como poderá ser o futuro da Rita e tento ver quais poderão ser as opções de vida, não influenciando, porque a Rita tem um feitio muito próprio. Tenho o sonho que ela seja feliz, esse é o meu sonho para a Rita e para os meus outros dois filhos”, diz. No livro, Rita faz uma declaração de guerra ao medo, esse fantasma que a desafia diariamente.
Mas de que é que a Rita tem medo? “De tanta coisa. Este medo de que falo no livro é aquele que todos os dias me assombra a vida nas minhas tarefas diárias. Por exemplo, o medo de andar de canadianas, embora consiga andar sozinha tenho sempre medo de cair, mesmo tendo caído muitas vezes”, diz. Ou ainda o medo dos amores, típico da adolescência. “Embora diga no livro que não penso nisso ainda, claro que penso, mas não é algo que tenha de ser agora, neste momento. Mas claro que todas as raparigas sonham com o príncipe encantado e eu também penso nisso”, remata.
Texto: Elizabete Agostinho; Fotos: João Manuel Ribeiro
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