Matay foi o convidado da emissão de “Alta Definição” deste sábado, 29 de janeiro. O cantor, de 35 anos, abriu o coração a Daniel Oliveira para recordar a infância difícil passada em Portugal, marcada por dificuldades financeiras e vários episódios de racismo.
Nasceu em Cabo Verde, mas cresceu em Marvila, na zona oriental de Lisboa. Matay é filho de pais separados e não se esquece da situação de pobreza que enfrentou. “Nunca faltou comida, principalmente em casa do meu pai. Os meus pais estão separados desde sempre. Em casa da minha mãe, era mais difícil. Tínhamos apoios, as associações onde íamos buscar comida. Não faltava porque a minha mãe era batalhadora”, começou por dizer.
E continuou: “A minha mãe já não estava com o meu pai. E o medo era que ela um dia pudesse não estar. Porque, principalmente naquele bairro, era difícil a convivência. Principalmente com a cor, era pesado. Os meus irmãos, quando a minha mãe não estava, quase sempre dava problemas. Ela era ali a guerreira. Havia uma maioria branca. Acho que era a única família de pretos que havia ali Não vivia sempre ali, não estava sempre daquele lado, mas quando ia tinha sempre de acertar contas, tinha de deixar uma posição, porque com os meus irmãos era complicado. Quase que não podiam brincar na rua. Era hostil. ‘Os pretos da Lena estavam na rua’.”
Muito emocionado, Matay recordou um dos vários episódios de racismo que viveu na infância. “Um dos meus irmãos estava a brincar na rua e houve uma mãe de um miúdo que da janela disse: ‘Então, estás a brincar com esse preto?’. A mãe começou a falar, o miúdo tentou disfarçar a coisa, mas por algum motivo, não sei o que é que lhe deu, bateu no meu irmão. E eu não gostei, também lhe bati. O miúdo usava óculos, caíram e partiram-se. A mãe dele desceu e pregou-me um chapadão”, contou, de lágrimas nos olhos
“Essa realidade era difícil, mas também é a tal força que vais buscar para conseguires sobreviver. Tu tens de sobreviver, vais aprender de dia para dia o que tens de fazer para conseguires continuar cá. Não sinto raiva de ninguém”, acrescentou.
Matay recorda episódio de racismo: “Ela é que me devia dinheiro”
Já durante a adolescência, Matay estudou Marcenaria no Colégio Dona Maria Pia e, “para juntar alguns trocos”, fazia algumas peças em madeira para vender. O artista recordou o dia em que vendeu um “banquinho de madeira” a uma senhora que nunca lhe chegou a pagar e que ainda o fez passar por um episódio tenso em público.
“Estava no autocarro e uma senhora que viu o meu banquinho. Morava ali perto, cruzava-me com ela muitas vezes. Na brincadeira disse: ‘Quer comprar?’. E ela disse que sim e disse-me qualquer coisa como 500 escudos. E disse-me: ‘Amanhã quando nos encontrarmos dou-te o dinheiro, não tenho aqui agora’. Dei-lhe o banco. Durante uns dias, não a vi mais. Quando a encontrei, fui pedir-lhe o dinheiro, ela disse-me que não”, relatou. “Estávamos no autocarro, ela criou um problema tão grande que era quase como se eu a estivesse a roubar. E ela é que me devia dinheiro. Se calhar, para mim, 500 escudos já dava para comprar o pão, se calhar em vez de beber leite em pó, bebíamos leite. Se calhar para ela não fazia assim tanta diferença, mas para nós fazia”, acrescentou, sem conseguir conter as lágrimas.
“Quantas vezes estava eu sentado e dizia que tinha de me levantar? Nunca fui pessoa que aceitar abusos. Era uma coisa que me revoltava. Nunca roubei ninguém. Nunca roubei uma pessoa, já roubei uns chocolates. Já tive de me embrulhar, de me levantar cheio de pó porque vi um amigo meu a roubar outra pessoa e não gostei…”, disse ainda.
“Ao final do dia, havia dois, três cafés que tinham uns bolos que não vendiam, estavam secos. E nós passávamos e levávamos os bolos para casa, éramos uns dois ou três. As pessoas não percebiam isso. Um preto na rua, naquela altura, é bandido. Um grupo de pretos é um gangue. Entrávamos no café, o dono já nos conhecia, era tranquilo. Mas sentia-se o olhar das pessoas”, recordou.
“O polícia disse ao branco que estava connosco: ‘Vai para casa'”
Os relatos de racismo de que foi vítima não ficaram por aqui. Matay foi abordado pela polícia sem razão aparente, durante uma saída à noite, em Santos, Lisboa. “Éramos quatro pretos e um branco. Veio a polícia e aborda-nos. Perguntei porquê. ‘Porque vocês enquadram-se na descrição do grupo que procuramos.’ E o polícia disse ao branco que estava connosco: ‘Tu vai para casa.’ Ele está connosco, é nosso amigo, vai para casa porquê.? Ele revoltado também, ficou ali, e nós voltados para a parede. Eu não me virei para a parede. ‘Trabalho todos os dias, vim aqui sair, vim me divertir, sou encostado à parede por nada, nem me dizem o porquê. Levem-me. Se eu fiz alguma coisa, levem-me para a esquadra. O que é que eu fiz para merecer isto?’”, disse, revelando ainda que acabaram por ser identificados, mas sem saber a razão da abordagem.
Orgulhoso da cor da sua pele, Matay confessou que passou por um “processo de aceitação para perceber que não é menos” do que ninguém. “Não tens só uma luta exterior, também uma interior. Não é só aquela história do preto que venceu. É sentires que realmente estás a fazer alguma coisa e valorizares-te por isso. Sentires que, o facto de seres preto, não te diminui em nada. Felizmente tenho várias coisas que faço que me deixam orgulhoso, no trabalho na música, no trabalho na (Santa Casa da ) Misericórdia, e estas pequenas vitórias acabam por ajudar-me a valorizar-me pelo que sou…”, afirmou, de sorriso no rosto.
Matay recorda abordagem do filho: “Eu não quero ser mais preto”
Matay contou que um dos seus filhos foi recentemente alvo de racismo na escola e lamentou que as crianças sejam alvo deste tipo de ataques. “Numa entrevista falei de uma situação com o meu filho, na escola. Ele questionou-me (sobre a cor da pele). Mas porque é que um miúdo aos cinco anos percebe que há um problema?” disse o cantor, que contou que um dos seus filhos lhe disse: “Eu não quero ser mais preto.”
E continuou: “A infância é uma coisa que deve ser bonita, pura. Nessa idade, ainda não estamos contaminados das ideias daquilo que é menos positivo na sociedade. Por que é que uma criança tem de levar com isto? Isto tem a ver com as pessoas, não tem a ver com a sociedade.”
Apesar de todos os episódio de preconceito de que foi alvo, Matay prefere focar-se nas coisas boas e partilhou um momento ternurento entre os filhos e um senhor de 92 anos. “Outro dia, encontrámos um senhor de 92 anos no parque. Os meus filhos estavam a jogar à bola, ele pediu a bola ao meu filho e ficou ali a jogar à bola com eles. E tu vias claramente brilho bom naquele olhar, coração bom, sem qualquer estereótipo, sem qualquer discriminação”, contou, emocionado.
“Um senhor de 90 e tal anos vem de outro tempo. Se calhar de um tempo em que esta questão da cor estava muito presente. Ele não mudou agora, não é dele. Está na educação e não só. Isto é uma escolha. Podes escolher marcar a diferença pela positiva e aquele senhor, aquele velhote, tão querido, disse: ‘ No próximo domingo estou cá. Se não vierem, têm falta de comparência.’”, findou.
Texto: Mafalda Mourão; Fotos: Reprodução SIC
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