Tem sorriso fácil, é um contador de histórias e a vida corre-lhe bem: venceu dois cancros, tem uma carreira de sucesso na rádio e na televisão e, mais importante para quem ultrapassa o tormento da doença, uma família de quem gosta muito. Mas há uma “pedra” no percurso de vida de António Sala, 63 anos, que ainda hoje o perturba: a relação com o pai, Arlindo Gomes, com quem se cruzou apenas “umas 50 vezes”. Talvez seja por isso que pede insistentemente ao filho, Miguel, 36 anos, que lhe dê netos. Mas não está fácil: “Estão a tentar, com médico e tudo…”, desvenda o júri de A Tua Cara Não Me É Estranha, da TVI, em entrevista exclusiva à VIP.
VIP – Depois de lançar a sua biografia descobriu que tinha um cancro num rim. Arrependeu-se, por causa do timing?
António Sala – Não me arrependo nada, pelo contrário. Acho que é um documento que fica do ponto de vista profissional, mas é também um documento da minha vida, das minhas emoções, dos afetos com as pessoas. O que eu acho que uma doença deste género nos faz é ter mais consciência de que somos finitos. Quando acontece uma coisa destas ficamos muito com a sensação de que pode ser agora. E muda completamente o conceito da vida. Completamente. A vida é como as férias, sabemos que vão acabar, mas nos primeiros dias está tudo na maior, a meio temos consciência de que temos de nos divertir e aproveitar o tempo porque vão acabar e quando estamos no final e sabemos o período de regresso a nossa forma de viver as coisas é mais intensa, tentamos saborear tudo melhor. Com a doença temos essa consciência. Eu fazia muitos projetos a longo prazo e agora faço apenas planos imediatos ou de curto prazo. Estou a desfrutar mais da vida e cada dia é um dia.
É por isso que traz sempre a família ao concurso?
A família vem porque quer. São voluntários. Eles é que querem vir e eu fico felicíssimo. Eu acho que eles perceberam que não vou andar cá sempre e querem desfrutar mais de mim. E eu quero desfrutar mais deles… Um susto destes muda as prioridades.
O que fazia e já não faz?
Estou mais com os meus amigos, com a minha família. Desfruto das coisas melhor e sem grandes pressas.
Vive muito para os afetos.
Acho que o que fica na nossa vida é a parte de afetos. A minha mãe não me deixou nada a não ser afetos.
E foi o melhor que lhe podia deixar…
Sem dúvida. Ela não tinha fortuna nem dinheiro, era uma pessoa que viveu sempre de forma simples e pobre. Não me deixou bens materiais. O que é que ela me deixou? O que é que eu recordo da minha mãe? Os beijos “repenicadinhos” que ela me dava, parece que ainda sinto o som. A alegria dela quando me via, ó meu filho Tóni… (pausa, respira fundo). E portanto as coisas boas são as coisas afetuosas. Eu acho que o que toda a gente recorda nas suas vidas são os momentos de grande afeto, de amor, de ternura e companheirismo. Eu acho que o meio termo nunca fica na história das pessoas. Fica o bem e o mal. Passados uns anos só nos lembramos as coisas sensacionais, que nos marcaram pela positivas e as más que nos marcaram pela negativa. Acho que preenchemos a vida demais com o meio termo.
No seu livro fala muito da sua mãe, com adjetivos muitos simpáticos. Havia uma relação muito próxima?
Acabei por ter com a minha mãe uma relação que não tinha com o meu pai. O meu pai faltou-me desde miúdo. Eu nasci de um casamento… de uma relação que não foi para a frente, portanto, eu habituei-me a passar Natais só com a minha mãe e avós maternos, sem o lado do meu pai e talvez tudo o que eu deveria dedicar e todo o amor que deveria ter tido ao meu pai de uma forma física, acabei por passar tudo para a minha mãe e para os meus avós.
No livro fala com muito carinho da sua mãe e dos seus avós, chama mesmo ao seu avô pai, mas tem poucas referências ao seu pai.
Há referências… É preciso ver que eu conheço o meu pai quando já estou casado, quando vou a caminho dos 30 anos. A partir daí tivemos uma relação boa e encontrávamo-nos, mas todas as vezes juntas não vi o meu pai mais do que umas 50 vezes.
Conseguiram ter uma relação de pai e filho?
Eu acho que, por fim, conseguimos. Estivemos sempre os dois a aproximarmo-nos, até que nos encontrámos mesmo, mas o meu pai já estava muito velho e doente com Alzheimer e acabou por falecer. Portanto, com o meu pai nunca tive uma ligação tão próxima como com a minha mãe. Houve coisas em miúdo que me marcaram. Por exemplo, na escola os miúdos mais velhos atazanam-nos a cabeça e maltratavam os mais novos… Eu recordo-me que às vezes levávamos umas chapadas dos mais velhos e muitos diziam: “Tu não me batas, olha que o meu pai vem cá e faz isto e aquilo.” E eu pensava: “Não posso dizer isto.” Quando me batiam eu ia dizer “vem cá a minha mãe”? A mãe é sinónimo de mais fraco, é mulher, as mães não vingam, o pai é que está lá para defender. Foram coisas que na altura não liguei, mas mais tarde percebi que me marcaram. Por isso a proximidade com a minha mãe. Mas também tenho muitas saudades do meu pai. Eu herdei muita coisa dele: a sensibilidade para a música, ele tocava piano e acordeão. Ele foi construtor de um piano, tinha muito jeito, eu não tenho. O meu pai escrevia bem. Acho que herdei algumas coisas do meu pai: alguma tranquilidade, alguma calma e um certo humor.
A sua mãe é que lhe dizia que tinha essas parecenças?
Não. A minha mãe não me falava do meu pai. Não me influenciava nem positiva nem negativamente. Ignorava. Habituei-me a crescer com o silêncio da minha mãe em relação ao meu pai. O meu pai era uma pessoa ausente e havia um silêncio que preenchia esse vazio. É engraçado que mais tarde, já era eu muito adulto, falámos dele algumas vezes, mas são coisas que ficam entre ela e eu, mas que me ajudaram a perceber o filme da vida deles.
Por causa da relação que teve com o seu pai, há a consciência, na sua relação com o seu filho
Miguel, de não querer que aconteça o mesmo?
Há, claro que há. Eu sou um pai-galinha! Sou um pai muito próximo, às vezes até demais. Nunca é demais, mas pronto. Sou um pai muito presente. Sou presente em tudo. Vinha há pouco a falar com ele, que me disse que amanhã ia almoçar sozinho. Eu perguntei se podia almoçar com ele e ficou assim combinado. Estivemos ontem na sessão da meia-noite no cinema. Há uma grande proximidade, uma cumplicidade fantástica. Fazemos férias, caminhadas…
O Miguel mora consigo?
Não, o Miguel mora na casa dele, só que é ao lado da minha. Calhou… Ele tem a vida dele, tem a mulher dele, mas temos uma proximidade muito grande.
Como é que lidou quando ele se apaixonou e saiu de casa? Teve medo de o perder?
Lidei bem. Percebemos que é uma coisa natural… Era complicado é se ele fosse trabalhar para longe ou para o estrangeiro. Aí sentia que ia ver o meu filho muito poucas vezes. Penso muito nos pais a quem isso acontece, sofrem muito. A distância provoca isso.
Lá está a distância, por causa do seu pai.
Sim, marcou-me. Talvez por isso até moramos muito próximos. Isso faz com que a minha vida seja muito melhor (risos).
Quando soube que tinha um tumor, a primeira coisa que me veio à cabeça foi: “Será que vou ver a minha filha crescer?” A minha maior preocupação nem era com a morte, era com o não poder acompanhar a minha filha…
Isso também aconteceu comigo! Assim que soube fiquei com a sensação de que o chão me tinha fugido debaixo dos pés e pensei no meu filho…
E pensou “porquê eu?”
Por acaso não. Eu sou voluntário há 15 anos no IPO. Estive na Pediatria, com as crianças, e agora estou nos cuidados paliativos, que é uma coisa muito complicada. Todas as terças-feiras eu estou lá. Sirvo jantares, dou lanches. Sou um voluntário de bata branca igual aos outros. Nunca deixei nenhum fotógrafo ir comigo. Estou lá há 15 anos porque quero e não é para dizer que sou bonzinho, não é para tirar partido nenhum em termos de média. Portanto, eu via ali tanta gente, crianças, jovens, pessoas mais velhas… pelo contrário porque não eu? Mas quando recebi a notícia é um murro fortíssimo. A minha primeira reação foi: “e o meu filho, se eu for”? Não o vou ver ser pai, não o vou ver crescer. Ele já está crescido, mas para nós são sempre os nossos meninos. Foi talvez a sensação mais difícil.
Pressiona o Miguel para ele ter filhos?
Estou-lhe sempre a perguntar, mas penso que não está fácil. Ele e Paula não estão a conseguir. Estão a tentar com o médico e tal, mas estas coisas é quando têm de ser… Mas não está a ser fácil. Terei pena se não for avô. Acho que se eles não conseguirem ser pais, deviam pensar em adotar uma criança.
Já falou disso com ele?
Falei uma vez, de forma muito superficial. “Então e se não conseguirem, pensam adotar?” Acho que eles devem tentar tudo, devem fazer todos os esforços no sentido de conseguirem ser pais. Se não conseguirem, é um problema deles, mas é natural que enveredem pela adoção. Eu gostava muito de ter vários netos. Agora é que eu tenho tempo para ser avô mesmo a sério. Eu hoje era capaz de mudar fraldas, de levar a criança a passear, de ir ao circo, coisas que por acaso como pai não tive a oportunidade de fazer porque era muito novo e tinha uma carreira com horários horríveis, em que entrava muito cedo. Houve coisas em que se calhar eu terei falhado e que agora tinha tempo e disposição.
Acabando agora esta série de A Tua Cara Não Me É Estranha, o que vai fazer?
Quero ter férias. Depois não sei. Gostava de voltar a fazer televisão, de ter um programa de conversas. Tenho dois projetos na cabeça.
Já foi sondado por algum canal?
Sondado não. Já houve conversas com pessoas ligadas à televisão. Quando as galas terminarem e depois das férias vou ver calmamente o que se pode fazer televisivamente.
Não sentiu, então, a falta de estar sob os holofotes mediáticos?
Eu tenho quase 47 anos de carreira. Já vivi todos os momentos que poderia ter vivido, atravessei grandes êxitos na rádio, na televisão. Vivi belíssimos momentos em todas as áreas. Não tenho saudades do que já fiz. Eu tenho é saudades do que ainda não fiz: gostava de fazer cinema. Adorava dizer “entrei no filme de fulano tal”. Porque é que deixei de fazer rádio? Porque fiz tudo o que havia para fazer na rádio. Sai na altura certa, em grande.
Texto: José Lúcio Duarte; Fotos: Paulo Lopes e Impala
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