Cheguou encharcada ao local da entrevista, porque, naquela manhã, S. Pedro decidiu presentear-nos com um dilúvio. Espirrou e mostrou logo o seu humor peculiar: “Só me faltava agora apanhar uma pneumonia! Sempre podia dizer aos outros ‘Uma leucemia? Já curti… Agora, venha a pneumonia’…”. E ficámos logo a conhecer o verdadeiro espírito de Sofia Lisboa, para muitos apenas a vocalista dos Silence 4, para alguns aquela heroína baixinha e pequenina que se agigantou contra um monstro chamado leucemia, quando estava grávida de 14 semanas. E venceu-o!
Agora, expôs a sua história num livro, Nunca Desistas de Viver, um verdadeiro murro no estômago para os leitores, mas com um final feliz. Que é essa a mensagem que Sofia quer transmitir: “um diagnóstico de cancro não tem de ser sempre uma sentença de morte”!
VIP – “Sofia, há qualquer coisa esquisita com as suas análises”. Como foi ouvir esta frase em 2010? Foi um murro no estômago?
Sofia Lisboa – Foi uma frase dúbia. Para mim, esquisito ou grave era qualquer coisa que estaria sempre relacionada com a gravidez ou o bebé, porque eram os resultados de umas análises de rotina, daqueles que se fazem nos vários estados da gravidez. O que eu esperava ouvir era qualquer coisa como “a gravidez não é viável” ou “o bebé tem uma malformação”…
Estava longe de imaginar esse diagnóstico?
Sim, porque eu não tinha sintomas de leucemia, tinha muito cansaço, mas isso também é sintoma de gravidez.
Grávida de 14 semanas, entendeu logo o que iria passar-se, nomeadamente com o feto?
Não. O telefonema foi num domingo. Eu e o meu marido tínhamos concorrido à universidade, portanto, na segunda, fui ao hospital durante a tarde e disseram-me que tinha de ir para Coimbra. Depois, fui fazer o exame de inglês e, à noite, estava no Hospital dos Covões à espera do diagnóstico. Estávamos completamente alheios ao que se estava a passar… Eu e o Pedro – que era, então, o meu marido –, com o nosso costumeiro positivismo perante a vida e achando que os nossos problemas são apenas umas pedrinhas que a gente olha, vira e chuta para canto…
Ainda por cima, a sua gravidez não tinha tido um começo fácil, tal como revela no livro. E agora? Ainda pode ter filhos?
Não. Mas não ponho de parte a ideia de adotar um. Inicialmente, não pensava assim, porque achava que era um ato de egoísmo escolher uma criança que, já por si, tenha um passado doloroso, para ser a minha criança. Ou seja, eu iria ser a mãe dessa criança, com tudo o que isso envolve, de amor e educação, e a doença poderia um dia voltar e ela acabava por levar mais uma grande pancada da vida. Entretanto, mudei de ideias, porque se essa vai ser a minha criança, eu vou ensinar-lhe que nada nos tirará os três, quatro, cinco, dez, trinta anos que passarmos juntas. Mas a adoção é apenas ainda uma ideia, porque é difícil e eu não tenho um historial médico que faça de mim uma boa candidata. Tenho uma vantagem: não tenho preferências. O único requisito é que não seja uma criança com uma doença ou uma deficiência, porque isso não seria bom para ninguém, já que era somar vários sofrimentos e eu iria assumir uma responsabilidade que poderia vir a não conseguir corresponder.
”Naquela noite, eu não tomei a decisão de viver, essa não nos pertence, mas tomei a decisão de não desistir”. É fácil tomar uma decisão destas? Fazia ideia do que ainda iria passar?
Fácil é o contrário e decidir que a solução perfeita é o suicídio: a doença acaba, a minha família sofre durante um bocado, o meu marido vai sofrer, mas depois, se tudo correr bem, refaz a vida… Difícil foi não o fazer, porque depois as consequências são muito maiores do que pensámos…
Foi encaminhada para o IPO, o de Lisboa, por uma questão logística, já que a sua irmã vivia na capital, e foi aí que foi seguida. Como é que foi o acompanhamento por parte dos profissionais desta instituição?
Excecional! A primeira ala que conheci foi o Serviço de Hematologia, porque é um cancro no sangue. Cheguei numa manhã e, logo na tarde desse dia, uma enfermeira foi comigo para a Maternidade Alfredo da Costa, para eu ter o oposto daquilo que é um parto, porque o nascimento ia acontecer mas eu não vinha de lá com uma criança nos braços. O pessoal da Hematologia não nos põe areia nos olhos, nem diz “vai correr tudo bem”; não, abraçam-nos de forma simbólica e a única certeza que temos é que, ali, estamos todos na mesma equipa, ou seja, todos a trabalhar para o mesmo objetivo, que é derrotar o cancro. A eles, dou-lhes o maior elogio que posso dar: eles não curam doenças, eles salvam vidas! E são todos muito jovens, na faixa etária dos vinte, trinta anos… Ouvimos tantas vezes dizer que a juventude está perdida e, no entanto, esta juventude dá-nos tantas lições…
Foi um marco quando decidiu cortar o cabelo, antes ainda de ele começar a cair?
Logo! Já que vai cair, vai ser pelas minhas mãos! Sempre fui uma mulher vaidosa e decidi que, já que ia cair, ia rapá-lo eu. No fundo, essa foi a parte que me chocou menos. É importante ser proativa, como eu sou, mas também é importante ter alguém que nos diga para termos calma.
Já era uma pessoa muito forte e determinada. A vitória sobre o cancro tornou-a ainda mais forte?
Ainda não é uma vitória definitiva, mas faz-me sentir que é possível. Isto pode parecer altruísmo barato, mas não é. Eu era forte e determinada, a otimista de serviço, e agora aquilo que quero passar não é a história do “ai, sofri tanto!”; interessa-me é a outra versão que diz: “estou assim agora!”, poder dizer aos outros “podes fazer isto ou aquilo” e transmitir a mensagem de que é possível vencer esta besta! É só isso que me interessa com este livro. Claro que tive de contar as partes negativas para encadear a história, digamos assim, mas a mensagem é esta. Eu já era positiva e otimista, mas sou ainda mais agora, porque tenho motivos para isso e é isso que eu quero transmitir. Eu não quero vender conselhos, eu dou-os! Peçam-mos! Peçam-me uma palavra que seja! Às vezes, não é fácil chegar à beira das pessoas que a gente conhece e dizer-lhes: “Hoje estou fraca.” É um orgulho estúpido, mas nós não temos coragem de o dizer aos nossos. Eu encarnei a personagem do palhaço para os outros não sofrerem, e chorava sozinha.
Esteve seis dias em coma. O desfecho da situação fez alterar a sua fé? Acredita em Deus? Acredita que Ele permitiu este desfecho?
Em pequenina, era obrigada a ir à missa. Crescemos, deixamos de ser obrigados. Essa história de que Deus está lá em cima e manda raios e trovões deixa de fazer sentido… Mas sempre tive uma crença, só que não preciso de ir à missa para falar com Deus. Para mim, ser um bom cristão é discernir, todos os dias, o Bem do Mal e praticar o Bem em vez do Mal. E o que é que aconteceu durante a doença? Houve coisas que aconteceram que eu não consigo explicar cientificamente, portanto, alguma coisa existe. Se é aquilo que nós ainda não controlamos totalmente a nível do cérebro, da nossa mente, se são seres de luz que andam por aí, não interessa. O que me interessa é que, para mim, foi tão eficaz como a quimioterapia.
Foi preciso coragem para escrever este livro?
Foi preciso coragem, mas ele é também uma forma de terapia e de exorcizar as coisas. E é uma boa ferramenta para chegar a mais pessoas que possam precisar e que aceitem esta ajuda.
Foi precisa também muita coragem para colocar a foto que retrata os efeitos secundários da medicação, onde a Sofia aparece com mais 30 quilos. Mais uma vez, foi uma forma pedagógica de mostrar aos outros que uma situação destas pode acabar bem?
Era exatamente aí que eu queria chegar. Eu sou extremamente vaidosa, uma bonequinha, e pensei muito sobre se deveria ou não colocar aquela foto. Na cama ao lado da minha estava outra pessoa igual a mim naquela foto e todas tínhamos o mesmo medo: o de ficarmos assim. A beleza também é exterior, não me venham cá dizer que é só interior, porque não é assim que nós nos sentimos. Não é preciso sermos um deslumbre, mas, ao menos, que nos possamos reconhecer quando nos vemos ao espelho. E eu, quando estava naquele estado, não acreditava que alguma vez pudesse recuperar. Estou muito satisfeita agora! Não estou perfeita, mas estou muito satisfeita. Coloquei a foto para que as pessoas que neste momento estão assim saibam que é passageiro e que é possível recuperar; aquilo é a exceção e não a regra. Custa-me mais falar das fraldas e da incontinência, mas faz tudo parte da doença. Essas pessoas estão humilhadas numa cama, na flor da idade, no limite da dignidade humana… Há também a questão do casamento. Eu tentei preservar ao máximo o meu marido e tive sempre a minha mãe comigo, mesmo depois de ter vindo para casa. A minha mãe é que tratava de mim, nessa fase. Como é que se recupera uma relação matrimonial com alguém depois de passar por aquilo?
E com o casamento, o que é que aconteceu?
Depois de todo este processo, separámo-nos. Mas tudo bem, estamos bem, dou-me com o Pedro e tudo isto é uma lição. Das primeiras coisas que ouvi quando tive o cancro foi: “Prepare-se, porque 90% dos casais que passam por uma situação destas estão divorciados ao fim de três meses”. Na altura, achei que escusava de ouvir aquilo e não pensámos muito nisso. Podem dizer que acabei por me separar na mesma, mas não foi durante o processo e quem sabe se, um dia, não nos reencontraremos… Nada nos impede agora, que é possível… Mas é preciso muita entrega. Eu não tive cancro, nós os dois tivemos cancro. Para mim, foi duro fisicamente, mas acredito que a dor dele e a da minha família tenha sido um milhão de vezes maior do que a minha.
Como é que vai ser, este Natal?
Este ano, o Natal vai ser mais risonho, apesar de ter a certeza de que vão surgir lágrimas mas, sem dúvida, de felicidade.
Vai ser com a família?
Será celebrado em Leiria, em família, em casa dos meus pais, com eles e a minha irmã, que vem de Lisboa.
Depois de tudo o que passou nos últimos quatro anos, e após a vitória sobre a doença, esta época ganhou para si um novo significado?
Para mim, o Natal sempre foi encarado como mais um excelente motivo para reunir a família à volta de uma mesa cheia de iguarias, a partilhar episódios cómicos (alguns tristes), com olhos brilhantes de felicidade por estarmos juntos. Hoje em dia, é, acima de tudo, a celebração da dádiva que Deus me deu ao permitir que eu renascesse.
Que mensagem de Natal gostaria de deixar a quem está a passar por situações semelhantes?
Gostava, sem dúvida, de relembrar que o amor tem muito poder, o amor dos que nos rodeiam e também o amor que temos por nós e que, por vezes, se desvanece. As dores de cada um, somadas, são enormes; mas os amores de cada um, somados, são invencíveis!
Texto: Luís Peniche; Fotos: Bruno Peres; Maquilhagem: Vanda Pimentel
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