«Doidas e Santas» assim se chama a peça de teatro que a atriz brasileira Cissa Guimarães traz até Portugal. O espetáculo, uma comédia, estará em cena no Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa, a partir desta quarta-feira, dia 27 de março. Depois vai andar a percorrer o País, de Norte a Sul.
Em entrevista à VIP, Cissa Guimarães conta que a paixão pela representação surgiu quando era criança. Foi o amor ao teatro que a fez sair de casa dos pais e ir em busca do sonho. Ainda estudou Química, mas acabou a abandonar a faculdade porque a paixão pela arte de representar falou mais alto. Estreou-se em 1977 com a peça Dor de Amor e os primeiros anos não foram nada fáceis.
Aos 61 anos, Cissa Guimarães é uma das atrizes e apresentadoras mais reconhecidas do Brasil e conta com uma longa e conceituada carreira de 41 anos. A peça de teatro que traz ao nosso País é um verdadeiro caso de estudo do outro lado do Atlântico, dado que está há dez anos em produção, sempre com público na plateia.
A vida de Cissa Guimarães ficará para sempre marcada pela morte do filho. Rafael Mascarenhas tinha 18 anos quando foi brutalmente atropelado enquanto andava de skate. O túnel estava fechado para manutenção, mas dois carros entraram no espaço em alta velocidade. «É uma dor imensa que tenho, mas jamais abriria mão destes 18 anos», confidencia. «Eu sentia que ia morrer porque não entrava mais ar, e lá no palco respirava».
VIP – Doidas e Santas é um verdadeiro sucesso no Brasil e está agora em Portugal. Como é que tudo começou?
Cissa Guimarães – A produção e os ensaios começaram em 2009 e nós estreámos em 2010. Estamos em 2019, portanto estamos a comemorar 10 anos do início. Adoraria que isto fosse uma coisa bem normal para todos, mas infelizmente no meu país é um fenómeno. Vocês aqui tem mais respeito pelo teatro. O público português ensina as crianças desde pequenos a gostarem de teatro. No Brasil, uma peça de teatro dura um mês ou dois e não tem público. Então, uma peça como a minha, que esta há dez anos em atividade, é um fenómeno e poder trazer agora para outro país, que eu sei que prestigia e gosta, é coroar esta temporada toda de uma maneira que eu sou muito grata. Tenho muita gratidão e felicidade.
Como é que surgiu o convite para vir representar para Portugal?
Eu procurei um grande ator brasileiro que esteve aqui com a peça dele, o Marcos Caruso. No Brasil todos soubemos do sucesso dele aqui. Vim passar umas férias aqui, telefonei para o Caruso e perguntei-lhe: ‘Acha que podia procurar alguém?’. Ele respondeu: ‘Claro, vou falar com uma amiga minha’. E aí surgiu o convite. Eu achei que vinha para Lisboa duas semaninhas, acabei numa tour nacional.
Como esta a ser recebida no nosso País?
Com muito carinho! O mérito não é meu, não! O mérito é vosso. Os portugueses são muito, muito carinhosos. Isso todo o mundo no Brasil fala. O brasileiro também tem isso, talvez até tenha aprendido um pouco com vocês. Já viajei com cinco tournées nacionais pelo Brasil e chegamos a ser convidados para comer em casa de pessoas humildes. Em três dias que eu estou aqui também já fui convidada para cinco jantares. Sinto carinho na rua, no hotel… eu machuquei a minha perna e perguntam o tempo todo se preciso de alguma coisa…
Há muitos atores brasileiros que estão a trocar o Brasil por Portugal. Pensa no mesmo?
Penso nisso sim.
Todos eles destacam a segurança do nosso País como um fator decisivo para a mudança…
O meu motivo é além. Com certeza a segurança é um argumento de primeira ordem mas eu estou sentindo o meu país vivendo um momento muito perigoso. Eu sou completamente contra este presidente que esta lá, eu acho muito triste o que está acontecendo e eu vejo o meu povo triste. E não consigo nem a curto prazo, nem a longo prazo, imaginar uma coisa melhor. Qualquer tipo de fascismo – e é um governo que sombria ideias de direita disfarçadamente – eu não gosto. Eu sinto que estou sendo manipulada por essa equipa política. Não consigo concordar. É a maneira como esse presidente fala das mulheres, das minorias, da LGBT, tudo o que fazem aos artistas. Ele é contra a arte…
Sente que a sua profissão está a ser ameaçada?
Como se pode ter um país sem arte? Não é só pelo facto de ser a minha profissão que eu posso vender óculos ou fazer tricot! Como é um país onde os museus estão a fechar? O ministério da cultura acabou, ele extinguiu. Eu não estou a pensar em mim, nem como vou ganhar dinheiro, já sou uma atriz conhecida, já tenho um trabalho. Estou a pensar como é que as crianças vão aprender a serem pintores, ler o Machado de Assis, saber quem é o Fernando Pessoa? Enfim, este seria um papo para muitas horas.
Estudou Química, uma área completamente diferente da representação. Como é que se apaixonou por este lado?
Eu sempre gostei, desde pequenina. A minha mãe é do nordeste, onde as mulheres são muito femininas e usam muito camisas de dormir de renda. Quando ela saia de casa com o meu pai, eu pequenina colocava as camisas de dormir e fazia um teatro de que era uma princesa. Quando a minha mãe chegava em casa eu estava maquilhada, desde os cinco, seis anos de idade. Nas reuniões de família em casa eu interrompia ‘ temos aqui uma peça de teatro!’. Sempre esteve dentro de mim, não tinha ninguém na família que tivesse isso. Na minha época, no final dos anos 70, não tinha o que hoje em dia existe muito no Brasil, e em Portugal, de empurrar os filhos porque acham que vão ganhar muito dinheiro e glamour. Eu recebo pedidos, por exemplo, ‘leva a minha filha’, e eu fico apavorada ao ver crianças de três anos sendo maquilhadas. Eu não tive esse empurrão, pelo contrário, eu tinha até medo de dizer ‘vou fazer faculdade de teatro’, então eu fui escondida.
Porque escolheu estudar Química?
Eu gostava muito de ciências, tinha um interesse muito grande por genética. Acho as leis da física a coisa mais incrível do Mundo. Mas logo no primeiro e segundo anos eu fui chamada para fazer uma peça. Começava às 6 da manha e ensaiava até as 4 da manhã e aí não dava.
Os seus pais apoiaram esta mudança profissional?
Eles apoiaram quando eles me viram em cena. Eu saí de casa, não dei nenhum trabalho, eu falei: ‘É isso que eu quero, vou batalhar pela minha vida’.
Com foram os primeiros anos de carreira?
Foram muito difíceis. A vida de um artista em geral acho que nunca é fácil, mas como era uma coisa que queria muito… eu nunca pedi um euro para nada aos meus pais por saber que não estava a fazer uma coisa que eles gostassem. Vivia com amigas, dividia a comida…
O sabor da vitória por ter conseguido ser uma conceituada atriz foi melhor?
Sim, e aí os meus pais me respeitaram e começaram a ficar meus fãs, assim como a família toda.
Além de atriz é apresentadora de televisão. Ainda lhe falta realizar algum sonho?
Quero fazer mais teatro, quero outros personagens, trabalhar com outros diretores. Quero muito uma coisa que faço pouco, e que tenho muita vontade, que é fazer mais cinema. Sou louca por cinema, mas no Brasil é tudo tão difícil, é uma área de ‘panelinhas’. São as mesmas pessoas que fazem sempre, existem grandes atores brasileiros a fazerem cinema, mas se olharmos são sempre os mesmos. Eu já lancei um livro, já plantei árvores, já tive filhos. Agora, de repente também posso fazer um pouco de nada (risos).
Como é que se imagina daqui a uns anos quando for mais velha? Tem medo de envelhecer?
Não é uma questão de medo. É a questão da fragilidade e de uma certa dependência. Eu sou muito independente desde pequena. Eu ia para o colégio sozinha, a minha mãe nunca precisou de ficar em casa comigo, eu saí de casa com 17 anos. A decrepitude assusta-me um pouco, mas Deus é que sabe o tempo que vou ficar aqui, quero ficar até onde eu esteja bem.
Como é a Cissa quando não está em palco? É mais serena?
Tranquila não sou, isso é uma busca que eu tenho. Pode ser que eu tenha na velhice, mas rezo muito por isso. Sou muito ansiosa, gosto de estar com os meus amigos e tenho uma luta muito grande que é a de me transformar numa pessoa melhor.
Numa entrevista disse que a peça “Doidas e Santas” a salvou, justamente porque há um episódio negativo na sua vida que a marcará para sempre, que é a morte do seu filho Rafael…
Para mim a peça de teatro foi um oxigénio. Tinha todo um momento muito importante na minha vida, eu estava produzindo teatro pela primeira vez. Quando produzimos viramos gente grande – eu escolhi quem eu queria, fiz tudo o que eu queria. Estreámos em abril e aí o Rafa fez a passagem em julho. É muito engraçado que ele tinha 18 anos e esta é uma peça que fala sobre um relacionamento de um casal com 50 anos, mas ele adorava. Ele vivia a assistir. Acabava o espetáculo e ele ligava-me, levava amigos, e eu perguntava ‘Porque é que você gosta tanto?» . E então quando aconteceu, o lugar que eu queria ir era no teatro. Acho que era para ele me sentir viva, porque você morre junto e era lá, no teatro, que eu me sentia viva. Ele está cá hoje…
Sente a energia dele todos os dias?
Todos os dias, a toda a hora, mas nunca se supera isso. As pessoas falam muito que eu sou um exemplo de superação, não sou nada! A maneira que eu fiz foi essa, a maneira de outra pessoa pode ser ficar trancada num quarto, pode ser ir embora e mudar de casa, de país… é o pior para todo o mundo. A maneira como vai reagir a isso é só sua. A minha foi muito abençoada porque o Rafa era um espírito com muita luz, ele realmente me conduz. E eu tive muito amor, de todos, dos meus familiares, dos meus amigos, do meu público. Até hoje eu tenho muito, muito, muito carinho em relação ao Rafa e isso ajuda-te a respirar. Basicamente, a sensação que eu tinha de verdade é que não entrava mais ar, eu sentia que ia morrer porque não entrava mais ar, e lá no palco respirava.
É contactada por outras mães com histórias parecidas?
É uma irmandade de mães. Quando uma mulher vem ter comigo ‘aconteceu a mesma coisa’, damos um abraço e somos irmãs. Porque só nos sabemos. A única coisa que eu posso ajudar um pouco é pensar no ganho. Eu ganhei esse tempo, o tempo que me foi dado. É uma dor imensa que tenho, mas eu jamais abriria mão desses 18 anos com o Rafa, jamais. Estou falando consigo hoje, mas pode ser que amanhã eu acorde e… tem dias que de repente me magoam, de repente acordo e digo: ‘Ai que saudade!’. Eu sou uma deficiente emocional. No outro dia vi um menino a andar de skate no Rio [de Janeiro] e falei: ‘Caramba que saudade’. Enfim, ao mesmo tempo toda essa dor, essa deficiência, essa marca, essa dor permanente, eu continuo com ela para ter tido essa pessoa na minha vida [mostra a foto do filho]. É a coisa mais linda do mundo, entendeu. Eu viveria tudo, tudo, para poder ter essa coisa mais linda do mundo, ele era grande de demais para seu só meu.
Aos 61 anos, é uma mulher lindíssima. Quais é que são os seus cuidados de beleza?
Sou filha de médicos e então tenho muito cuidado com a saúde, com a alimentação. Faço muita ginástica, bebo muita água. Mas também como carne, não sou fundamentalista com nada. Mas procuro ter atenção com açúcar, adoro os vossos doces, mas é um Pastel de Belém e acabou, só daqui a três dias é que como outro. Na minha casa não há doce, só no final da semana é que há um bolinho. E depois é como a personagem da peça fala, eu procuro ainda gargalhar e divertir-me.
A beleza vem da atitude?
Eu acho que sim. Com o tempo o que está dentro do coração vem para fora. Eu nunca fiz uma plástica, fiz a pálpebra só uma vez quando o Rafa morreu porque eu fiquei muito inchada, estava com duas bolsas. Não sou contra, penso fazer. Mas há aquelas mulheres que não adianta, o que têm dentro vem para fora. Eu quero ficar uma senhorinha digna, talvez eu deixe os meus cabelos ficarem brancos a uma dada hora. Vou ter sempre amigos jovens à minha volta porque o meu espírito é jovem, quero que me levem a passear muito, quando não poder mais viajar sozinha. E ao mesmo tempo quero saber ficar sozinha, não gosto de encher o saco a ninguém.
Texto: Ricardina Batista; Fotos: Paula Alveno e reprodução Instagram
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