Para assinalar os 50 anos de carreira, Vítor de Sousa, de 65, vai lançar um livro autobiográfico. Uma ideia que no início o fez rir por achar que estava a ser vítima de uma piada. A verdade é que o ator tem uma vida bem preenchida. À VIP, conta alguns dos momentos mais marcantes.
VIP – Faz 50 anos de carreira…
Vítor de Sousa – Essas contas são um bocado estranhas porque oficialmente o meu primeiro contrato de teatro foi em 1965, com o mestre Ribeirinho. Anteriormente, já tinha feito algumas figurações e pequenos papéis para a RTP. Portanto, só comecei a fazer contas quando um amigo me disse que esta era a altura ideal para fazer a minha biografia. Como eu sou uma pessoa muito organizada e tenho muita coisa guardada, ele achava que podíamos fazer um documento do que se passou nestes 50 anos. Eu achei que era para os Apanhados, mas não. E curiosamente, se tudo correr como está previsto este ano, no Dia Mundial da Poesia, que é a 21 de março, será lançado esse livro, da autoria do Luciano Reis, que eu estou a supervisionar.
Serão as suas memórias?
Será a minha biografia. Tudo o que eu fiz, os elencos das peças, todo o meu percurso em televisão, em teatro, em cinema, em rádio, em apresentações de espetáculos, na poesia. Aliás, o livro chama-se Vítor de Sousa: Ator com Alma de Poeta. A poesia esteve sempre muito paralela com o teatro. Eu tenho sempre a ideia dos primeiros poemas que disse em público num ginásio do Liceu Camões. Tenho fotografias disso, curiosamente. Era muito organizado. E digo era com uma certa mágoa, porque depois da morte da minha mãe encolhi um pouco os ombros. Não quer dizer que seja desgovernado nas minhas coisas, mas já não lhes dou tanta importância.
Mas porque sente que já viveu o que tinha para viver, ou que já deu o que tinha para dar…?
Não, eu penso que ainda tenho alguma coisa para dar. E quero fazer agora um espetáculo de teatro e com poesia… mas, não sei… Depois da morte da minha mãe operaram-se em mim algumas modificações. Esta foi uma das maiores que eu senti.
Quais foram as outras?
A ausência física é uma dor profundíssima, a hipersensibilidade está muito mais refinada. Desde que ela morreu, antes de me deitar ou depois de apagar a luz tenho um pensamento para ela. E só à relativamente pouco tempo – e já passaram dois anos – é que eu consegui apagar o número de telefone dela do meu telemóvel. Teve de ser num ato repentino, em que se falava de tudo menos dela. Eu andava à procura de um número de telefone na letra “m”, passei mãe e pensei: “é hoje”. E apaguei. Demorei muito tempo a ter coragem de cortar esse laço.
Tinha uma relação muito próxima com ela?
Sim, foram muitos anos. É um vazio, é uma perda insubstituível e eu sou muito crescido, já tenho 65 anos, mas de qualquer maneira não há forma de contornar esta dor.
Li que não chegou a ver a sua mãe depois de morta. Porquê? Não sentiu necessidade de se despedir?
A minha mãe teve o cuidado de morrer quando eu estava longe de Lisboa, estava com o espetáculo Hedda Gabler em Portimão. Soube da morte dela às 5 da manhã e fui para a rua, chorei que me fartei, falei sozinho. Era uma morte anunciada e eu quase que a desejei muitas vezes. Eu sei que é horrível dizer isto, mas a minha mãe tinha uma doença irreversível (esclerose lateral amiotrófica), já era alimentada através de uma sonda, perdeu a voz… A minha mãe, que ao longo de toda a doença quis sempre que eu não tivesse conhecimento das coisas menos boas que lhe iam acontecendo para eu não sofrer, teve também o cuidado de morrer quando eu não estava ao pé dela. Como estava com o espetáculo fiz o espetáculo.
Não sei como é que conseguiu…
Eu achei que como a minha mãe já não tinha tido saúde para ver esta peça, que a melhor homenagem que lhe podia fazer era fazê-la. A sala estava esgotada. Assim que acabei a atuação segui para Lisboa. Pedi que fechassem a urna e decidi que não a abrissem quando chegasse. Nos últimos tempos ela não queria estar com as amigas para que estas não vissem a sua fragilidade. Eu achei que ali também não a devia exibir.
Alguma vez pensou que poderia ter sido diferente se não estivesse em Portimão?
Teria sido diferente porque eu teria ido a correr. Mas ela estava bem, com a pessoa do apoio domiciliário. Curiosamente, a minha mãe nunca soube quanto é que eu pagava por este serviço. Eram 1500 euros por mês e a minha mãe sempre pensou que eu pagava 500. Porque se ela imaginasse… Ela sabia que eu não conseguia, que o pouco que tinha amealhado não era para gastar naquilo… Mas eu não queria pô-la num lar, não podia deixá-la sozinha… Foi muito complicado.
É uma pessoa organizada nas suas finanças?
Tenho algum cuidado, nunca fui muito gastador. Não tenho nada a mania das marcas e só me cuido quando venho à rua para trabalhar. Faz parte de ser figura pública. Outra coisa em que estou um bocadinho mais desleixado…
O que é que recorda da sua mãe com mais saudades?
Os beijos, os bolinhos. Sabe que a minha mãe nos períodos de crise que afetam os atores, às vezes, do ordenado dela ou da pensão, punha na minha conta nem que fossem 200 euros. Eu já não tinha idade para ser ajudado pela mamã. Repare que a minha mãe casou muito nova, aos 17 anos, divorciou-se aos 18. Viveu e trabalhou para mim e entendi que agora tinha chegado a hora de retribuir. O meu pai entretanto ausentou-se, voltou anos mais tarde, mas sempre foi uma personagem secundária. Vivi sempre num matriarcado com a minha mãe e a minha avó materna. E portanto… sofre-se muito.
Só conheceu o seu pai quase aos 40.
Sim tinha eu 35, 40 anos quando apareceu vindo de África. A verdade é que nunca tive curiosidade de o procurar. Pelos vistos ele tinha, mas como estava em África e tinha voltado a casar, não conseguia vir cá. Quando regressou encontrei-me com ele como me podia ter encontrado com outra pessoa qualquer. Foi um reencontro que não me emocionou absolutamente nada. Depois, mantivemos uma relação muito cordial, mas sem paixão.
Olhando para trás sente que lhe faltou essa figura paterna?
Fez falta, claro, mas nunca fiz perguntas sobre ele. Sabia o nome dele e que estava em África, mais nada.
Nunca o culpou por o ter deixado?
Não… Eu tinha um ano, era muito pequenino. A minha mãe foi uma mulher de muita coragem, porque em 1946 uma rapariga casar aos 17 e divorciar-se ao 18 era muito duro.
Precisamente por não ter tido pai foi vítima do boato de ser filho do prior?
Exato. Como não havia uma figura paternal as pessoas inventavam. A questão é que eu me dava muito bem com o padre Álvaro Proença. Fui sacristão, fiz casamentos, batizados e funerais na Igreja de Benfica.
Pensou em seguir a vocação de padre. O que o fez mudar de ideias?
O facto de eu ser filho de pais divorciados. Ainda se meteu uma cunha ao arcebispo que me administrou o crisma. O cardeal Cerejeira recebeu-me nos jardins do seminário dos Olivais. Mas não resolveu nada porque era preciso autorização de Roma.
Na altura sentia a vocação?
Talvez sentisse mais o fascínio pela encenação litúrgica, era bom ouvir falar. Deixei- me ir um pouco atrás daquela encenação um pouco lenta, faltava-lhe ali o Filipe La Féria a acelerar tudo (risos). Eu gostava daquilo, de todas aquelas marcações.
Qual é a sua relação com a religião hoje?
Trato Deus por tu, mas às vezes só me lembro Dele quando estou aflito. Já acreditei mais. Aliás, estou numa fase da vida muito “cinzenta”. Perturbam-me muito as notícias, perturba- me muito tudo o que oiço. Ando muito triste. Acho que nos estão a destroçar alegremente. Eu, que berrei pelo 25 de Abril até à rouquidão, estou muito desmotivado. Veja só a quantidade de companhias de teatro que estão a fechar ou que têm de rever as suas programações. Temos de dar a volta por cima pela positiva.
Voltando um bocadinho atrás: disse que se riu quando lhe falaram de um livro de memórias. Acha que não merece?
Aconteceu-me o mesmo noutra ocasião semelhante pela distinção. O ex-Presidente da República Jorge Sampaio resolveu atribuir-me a Comenda da Ordem do Infante Dom Henrique. Ligaram-me a dizer isso e eu pensei: “pronto, lá vou eu cair numa dos Apanhados”. Achei que era brincadeira. Não disse uma asneira ao telefone porque não calhou, porque pensei mesmo que estavam a gozar comigo. É uma honra, claro. A minha mãe ficou tão feliz, tão feliz. Ainda conseguiu estar presente. Não é falsa modéstia, mas acho sempre que não mereço. Mas fiquei vaidoso. E há outras condecorações às quais sou profundamente sensível. Por exemplo, entrar num táxi, como aconteceu há relativamente pouco tempo, e o taxista reconhecer a minha voz e dizer--me: “ai, o senhor a dizer poesia… Se gosto de poesia é a si que eu o devo.” Fiquei muito orgulhoso.
Como é que surgiu a ideia de ser ator?
Foi a ouvir telefonia. Eu ouvia aquelas histórias e apetecia-me entrar nelas através do rádio. Depois também ajudou o facto de a minha avó me levar muito ao teatro. Vi muito teatro, nomeadamente com a Laura Alves, com quem depois tive o privilégio de trabalhar.
Sente-se mais ator ou mais declamador de poesia?
Sinto-me mais ator. O teatro é o rio principal, o resto são afluentes.
O que é que lhe falta fazer?
Gostava de fazer uma tragédia, mas isso não vale a pena, porque basta liga a televisão às 20h e está ali tudo.
Alguma vez desejou não ser figura pública?
Não. Porque eu comecei mesmo por baixo. Eu não fiz Morangos com Açúcar e saltei logo para a celebridade. Eu fiz figuração encostado a uma parede, a abrir uma porta para entrar o rei. Depois tive pequenos papéis até ao dia em que pedi à Eunice Muñoz se podia fazer um casting. Conversámos e ela foi de uma extrema generosidade. Acabou por ligar à minha mãe para lhe pedir que me deixasse ir para o conservatório estudar Teatro. A minha mãe achava que era tudo muito bonito, mas que era uma profissão muito ingrata e insegura em termos financeiros.
Coisa que não mudou…
Coisa que não mudou. Eu já tive interre-gnos em que achava que tinha de ir aprender culinária, que tinha de ir vender croquetes, chamuças. Tenho muito medo de dois ou três países estarem a querer dominar a Europa e de nós ficarmos sem a nossa identidade. É deixar que as pessoas fiquem estupidificadas em casa a ver programas como A Casa dos Segredos, com o devido respeito pelas pessoas que gostam desse tipo de formatos. Eu não gosto, paciência. Mas quanto menos o povo aprender, e quanto menos o povo souber, melhor.
Votou nas últimas eleições?
Votei sempre. Não sou filiado em algum partido político, mas nunca deixei de votar. Fico muito triste quando vejo amigos meus que se abstêm, porque acho que o direito ao voto foi uma conquista.
Disse que gritou até à rouquidão no 25 de Abril. Onde estava nesse dia?
Estava na cama, ninguém me avisou da Revolução (risos). Só quando a minha mãe me foi acordar, porque o fazia todos os dias, é que me disse que não ia trabalhar porque estavam a dizer na rádio para ficarmos em casa. Depois lá liguei a telefonia e só ao fim do dia é que saí para ir buscar os jornais para perceber o que era aquele posto de comando das Forças Armadas. Foi uma alegria e uma festa e vivi tudo muito intensamente.
Pensei que podia ter tido algum envolvimento na Revolução, já que fez tropa.
Fiz 36 meses de tropa num período em que de um dia para o outro podia ter o nome numa folha de mobilização para a guerra. Felizmente não fui. Dei-me bem porque estive numa repartição do Estado Maior do Exército e tive a sorte de lidar com oficiais que me tratavam como uma pessoa; era o Sousa. Foram 36 meses que não gostei, mas cujo trabalho fiz sempre bem feito. Isto sempre sem apontar uma única arma.
Não aprendeu a disparar?
Não, a minha violência é mais verbal… A minha violência é destruidora porque quando acho que tenho razão perco-a e sou verbalmente violento. E não peço desculpa a ninguém.
Há pouco estava a dizer que não há melhor elogio do que o de ser reconhecido pelo público.
Quando afirmou ser homossexual teve medo de ser censurado pelo público?
Não, fui apanhado um bocado pelos acontecimentos quando assumi. A minha mãe já tinha falecido e depois fui apanhado de surpresa no final de uma entrevista. Depois de uma pergunta eu tive um ataque de frontalidade e respondi com um excerto de um poema do António Gedeão. E estava danado com aquela associação que fizeram do meu nome ao processo da Casa Pia, onde fui testemunha de defesa do meu amigo Carlos Cruz. Como apareceu um senhor na TV – que eu nunca tinha visto na minha vida – a falar no meu nome, a dizer que eu morava em sítios onde nunca morei e que conhecia pessoas que nunca conheci, entendi que tinha o direito de perceber de onde tudo isto vinha. Ainda não percebi, mas agora também já não me preocupo. O que fica sempre é a primeira coisa que se diz. Isso é o que as pessoas fixam. Mesmo que depois se desminta, não é a mesma coisa.
Nunca pensou processar?
Não. Tive um problema com um jornal há uns anos, quando estava a gravar a Floribella. Estive a morrer, o médico diz que eu tive um “curto-circuito”. Passado um mês vem numa primeira página a dizer que eu tinha estado internado por causa das insinuações que tinham sido feitas sobre mim. Uma coisa não tinha nada a ver com a outra. Exigi um direito de resposta e veio publicado, mas a primeira página desse jornal é que ficou a valer. Quanto a ter assumido a minha bissexualidade ou a minha homossexualidade… Eu tive namoradas e gostei muito delas. Gosto de tudo o que é belo e às vezes o que é belo para mim não é belo para outras pessoas. Às vezes eu não gosto só do lado exterior – que gosto! –, mas também quero conhecer realmente o interior das pessoas, o seu sentido de humor, a sua cultura. Mas o que é certo é que por causa da minha frontalidade nunca escondi às minhas namoradas o que se passava comigo, que podia achar bonito ter uma pessoa do mesmo sexo que eu.
Teve muitas paixões ao longo da vida?
Algumas. Agora estou reformado. Estou muito amorfo… O amor não tem idade, mas há aqui qualquer coisa que ficou desafinada. Sei lá… Eu cruzo os braços e nunca vou por ali. Ando a cruzar muito os braços e a deixar andar. E gostava de morrer de repente. O sofrimento é a coisa que mais me apavora.
Pensa muito na morte?
Ultimamente sim. Já fiz testamento a um afilhado meu de cinco anos. Salvaguardei essa questão porque senão depois a quem é que deixo o pouco que tenho? Ao governo que estiver na altura?
Não teve pena de não ter sido pai?
Nunca pensei nisso. Gosto muito de ser padrinho.
Texto: Sónia Salgueiro Silva; Fotos: Bruno Peres; Produção: Marco António
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