Aproximamo-nos do dia 29 de fevereiro – o Dia Mundial das Doenças Raras. Como tal, a Dra. Marta Amorim, especialista em Genética Médica do H. Lusíadas Lisboa, explica-nos o que são e a importância de as discutir.
“Quando ouvimos falar de doenças raras, se temos a sorte de não pertencer a uma família afectada, parece algo longínquo, e que pode não nos dizer respeito. No entanto, embora as doenças sejam efetivamente raras individualmente, se os indivíduos com doença rara fossem uma nação, seriam a terceira mais populosa do mundo. Estima-se que cerca de 6% da população padeça de uma doença rara, o que em Portugal contabiliza cerca de 600.000 indivíduos. Já não parece tão distante, pois não? Por definição as doenças raras afectam menos de 1 em cada 2000 indivíduos.
Mas há umas mais raras e outras menos raras, umas afectam poucos indivíduos no mundo, enquanto outras é provável que conheça alguém afectado, ainda que não saiba. Algumas são cancros raros, patologias autoimunes, mas cerca de 80% destas têm etiologia genética. Perceber uma doença genética nem sempre é fácil, é mais tangível um braço partido por uma queda, uma gastroenterite por um qualquer vírus, ou mesmo um enfarte do miocárdio quando o calibre das artérias do coração nos trama.
O código genético é uma sequência de bases identificadas pelas letras A,T,C e G, em que 2% (os genes) se traduzem em proteínas e instruem aquilo que somos. Todas as células, tecidos, órgãos do nosso corpo e o seu funcionamento estão dependentes destas instruções. À molécula que contém estas bases chamamos ácido desoxirribonucleico (mais conhecido por ADN) e cada uma das nossas células tem 3 biliões de bases/letras, arrumadas em 46 cromossomas (22 pares de cromossomas numerados de 1 a 22 e um par de cromossomas sexuais, XX ou XY), que contêm cerca de 20.000 genes duplicados (uma cópia de cada progenitor).
Às doenças que resultam de alterações ao código genético, que comprometem gravemente a função de uma ou mais proteínas, chamamos patologias genéticas. São doenças que afectam em cerca de metade dos casos os indivíduos na idade infantil, mas também podem ter início na vida adulta (como formas de predisposição para cancro ou doenças neurodegenerativas do adulto), podem ter resultados sistémicos com múltiplas malformações congénitas, patologia do desenvolvimento motor, psicológico, intelectual, ou afectarem apenas um órgão (como a surdez de etiologia genética ou perda da acuidade visual e cegueira por um dos múltiplos genes que causam retinopatia pigmentar). Algumas são herdadas de progenitores afectados, outras estavam à gerações silenciosamente guardadas no ADN e outras ainda surgem de novo (um erro esporádico e não herdado de nenhum progenitor).
Quer tudo isto dizer que não ter história familiar de doença genética conhecida, não ter doença genética suspeita ou diagnosticada à nascença, não significa que ela não esteja lá. Mais uma vez, já não parece tão distante.
As doenças que se manifestam quando apenas uma das cópias dos genes tem um erro dizemos que têm uma hereditariedade dominante e as que precisam que sejam as duas cópias a ter alterações têm uma hereditariedade recessiva (para se manifestarem, ambos os progenitores precisam de ser portadores de pelo menos um erro no mesmo gene). Nas doenças de hereditariedade ligada ao cromossoma X, há manifestações diferentes consoante o sexo à nascença: habitualmente indivíduos do sexo masculino são afectados (porque têm apenas um cromossoma X – são XY) e do sexo feminino (XX) são portadoras (podendo ou não ter sintomas).
São exemplo de doenças de hereditariedade ligada ao cromossoma X, e que por isso afectam predominantemente o sexo masculino, as distrofinopatias. São patologias genéticas com uma incidência de cerca de 1 em cada 5000 indivíduos, que afectam o músculo, em consequência de erros no gene DMD, o maior gene humano e que codifica a distrofina. A distrofina é uma importante proteína para o normal funcionamento do músculo, tanto esquelético como cardíaco, dando suporte à ligação entre a actina (dentro da célula) e a matriz extra celular. Quando este suporte falha ocorre morte das células musculares e substituição das mesmas por gordura e tecido fibroso (o que dá a falsa impressão de hipertrofia do músculo). As manifestações da doença situam-se num espectro (de acordo com a ausência e gravidade de disfunção da proteína), sendo o mais grave a Distrofia Muscular de Duchenne. Caracteriza-se por fraqueza muscular proximal de início na infância (abaixo dos 5 anos), que afecta a marcha, a capacidade da correr, saltar, subir escadas e levantar do chão (recorrem aos braços para se apoiarem) e rapidamente progressiva, com necessidade de cadeira de rodas até aos 13 anos de idade. O prognóstico é complicado pela afeção cardíaca e respiratória (esta última em consequência de um diafragma fraco e que impede os movimentos respiratórios). Em cerca de 2/3 é herdada da mãe (que na maioria das vezes desconhece a sua condição de portadora) e em 1/3 aparece de novo.
Como para a maioria das doenças genéticas não existe cura. Os glucocorticóides atrasam a progressão da doença (mas têm imensos efeitos secundários) e a fisioterapia melhora a qualidade de vida (mas não reverte a progressão). Existem fármacos aprovados pela FDA (U.S. Food and Drug Administration) e outros pela EMA (Agência Europeia do Medicamento) que alteram a leitura do gene, saltando o erro presente, mas nenhum pelas duas agências e para alterações específicas do ADN (não são universais para todos os erros e todos os pacientes Duchenne). Há investigação em curso para edição e substituição do gene, esta última já em ensaios clínicos: transferência de partes do gene (o gene DMD é o maior gene humano e portanto de impossível transporte se inteiro) recorrendo a adenovirus associados, de forma semelhante ao que acontece com o tão falado Zolgensma.”
A importância da genética molecular
“Os recentes avanços em genética molecular, permitiram um aumento exponencial do conhecimento: mais indivíduos sequenciados, mais síndromes, mais genes e vias identificadas. A par deste conhecimento aumentou a nossa capacidade de diagnóstico, subdiagnóstico, diagnóstico precoce, monitorização das doenças e terapias personalizadas, dirigidas à causa genética subjacente. Por exemplo, já é possível realizar estudos pré-concepcionais de portadores (para doenças de hereditariedade autossómica recessiva e ligada ao cromossoma X, as tais que podemos ter sem saber) e estudos pré-natais não invasivos (no sangue materno) de rastreio de patologias genéticas no feto (que afectem o número de cromossomas, deleções de partes deles ou mesmo patologia de genes específicos). Estamos também a assistir ao início do que se prevê um crescimento exponencial de terapias inovadoras, que serão à sua vez as mais caras do mundo.
A pressão no sistema nacional será cada vez maior, mas não pode ser vista de forma isolada e pensando apenas no dia de hoje. As doenças raras representam um enorme desafio para a saúde, com peso humano e económico: pelo sofrimento físico e psicológico, do próprio e da família, pela necessidade de cuidados agudos e crónicos, adaptações em casa, ao carro, cuidador diário, múltiplas consultas, internamentos, cirurgias, absentismo, ausência de produtividade, muitas vezes pela falta de conhecimento e de respostas, pelo preço dos testes e de todas as terapias. Mas quanto maior a eficácia destas últimas, menor será o preço de todas as anteriores. Um fármaco que parece caro, pode acabar “barato”. Todavia, o compromisso para se estabelecerem modelos de aprovação das terapias genéticas inovadoras tem de ser sério, não esquecendo as limitações destes ensaios clínicos (com reduzido número de participantes e duração) e as expectativas, por vezes desajustadas, dos pacientes e famílias.
É importante discutir doenças raras! É importante planear a curto, médio e longo prazo! É importante o registo nacional de doentes com patologias raras, a fomentação dos centros de referência em número ajustado à incidência das doenças no país e integrados com a rede europeia (concentrando experiência e capacidade de avaliação e decisão da introdução de novas terapias e aumentando o potencial de negociação dos fármacos), implementar ferramentas de avaliação de gastos em saúde e correspondente impacto em qualidade de vida (QUALYs), rastreios neonatais precoces que aumentem a acessibilidade e custo-efetividade para doenças degenerativas com terapias modificadoras de doença, mais informação, clara e desinteressada, sobre os benefícios realistas e também os riscos destas terapias, distinguir o financiamento de resposta clínica versus investigação (aumentando os ensaios clínicos e a investigação em Portugal), recomendações nacionais que protejam a viabilidade do sistema e, no fim, a saúde de todos nós. As doenças raras só afectam alguns, mas a forma como lidamos com elas, afecta-nos a todos.”
Fotos: Freepik
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