Mário Soares
O adeus ao “pai da democracia” nacional

Nacional

Era considerado, por muitos, como o “pai da democracia portuguesa”. Político influente e emblemático, reconhecido nos quatro cantos do mundo, impressionante homem de cultura, Mário Soares abandonou-nos este sábado, dia 7 de janeiro

Sáb, 07/01/2017 - 16:00

Era considerado, por muitos, como o “pai da democracia portuguesa”. Político influente e emblemático, reconhecido nos quatro cantos do mundo, impressionante homem de cultura, Mário Soares abandonou-nos este sábado, dia 7 de janeiro. O País e o Mundo ficaram mais pobres, mas o seu legado continuará a perpetuar-se através da Fundação com o seu nome.

 

Mário Soares, o animal político, resistente, combatente, sempre se mostrou à frente do seu tempo. Para a maioria dos portugueses pós-25 de Abril, era carinhosamente tratado por “o Bochechas”. Na rua foi mimado com o slogan “Soares é fixe”; como mote de campanha que ficou para a posteridade, era o “presidente de todos os portugueses”. Foi um político extraordinário que não esqueceu a sua condição de homem comum, bonacheirão, atencioso, amante dos melhores confortos, não dispensando um bom almoço ou uma sesta retemperadora, e capaz de expor publicamente as suas dúvidas e hesitações, dialogando de igual para igual com a alta esfera do poder internacional ou com o comum dos plebeus, privilegiando o contacto com as populações, eternizado nas diversas “Presidências abertas” por todo o País. Mário Alberto Nobre Lopes Soares, talvez o político português mais emblemático do último século, nasceu em Lisboa, a 7 de Dezembro de 1924.

 

O seu pai, João Lopes Soares (1878-1970), foi professor, pedagogo e político da Primeira República, tendo fundado o Colégio Moderno, em Lisboa, e sido padre durante algum tempo, antes de casar com Elisa Nobre Baptista (1887-1955). Antes do casamento, João Lopes Soares teve ainda um outro filho, de mãe desconhecida, de seu nome Tertuliano Lopes Soares, enquanto de um casamento anterior, Elisa teve dois filhos, J. Nobre Baptista e Cândido Nobre Baptista. Mário Soares foi educado na religião católica romana, mas acabou por se identificar e classificar como republicano, laico e socialista.

 

Casou-se com Maria de Jesus Simões Barroso Soares em 1949, com quem teve dois filhos (Isabel, psicóloga e diretora do Colégio Moderno; e João, advogado, deputado da Assembleia da República, ex-deputado do Parlamento Europeu e ex-Presidente da Câmara Municipal de Lisboa), os quais o presentearam ao longo da sua vida com cinco netos: Inês, Mafalda, Mário, Jonas e Lilah.

 

Licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, corria o ano de 1951, e em Direito, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, seis anos mais tarde. Foi professor do ensino secundário e diretor do Colégio Moderno, fundado por seu pai. Exerceu a advocacia durante muitos anos e, quando do seu exílio em França, foi “Chargé de Cours” nas Universidades de Vincennes (Paris VIII) e da Sorbonne (Paris IV), tendo sido igualmente professor associado na Faculdade de Letras da Universidade da Alta Bretanha (Rennes) – uma das universidades de que é doutor “Honoris Causa”.

 

Contra a ditadura

 

Foi, desde a juventude, um ativo opositor à ditadura (de 1941 à revolução do 25 de Abril de 1974), tendo acabado por estar preso 12 vezes por delito de opinião (num total de quase três anos de cadeia), sido deportado sem julgamento para S. Tomé, em 1968, e forçado a exilar-se em França entre 1970 e 1974.

 

Durante a ditadura, levou a cabo um longo e persistente combate que o levou a estar presente e ativo na organização da oposição democrática ao salazarismo. Pertenceu ao MUNAF (Movimento de Unidade Nacional Anti-Fascista), em Maio de 1943, e, depois, foi membro da Comissão Central do MUD (Movimento de Unidade Democrática), sob a presidência do Prof. Mário de Azevedo Gomes (1946), tendo sido fundador do MUD Juvenil e membro da primeira Comissão Central. Foi Secretário da Comissão Central da Candidatura do General Norton de Matos à Presidência da República, em 1949. Integrou o Directório Democrático-Social (1955), dirigido por António Sérgio, Jaime Cortesão e Azevedo Gomes e, em 1958, pertenceu à Comissão da Candidatura do General Humberto Delgado à Presidência da República. Foi advogado defensor de presos políticos e participou em numerosos julgamentos, realizados em condições dramáticas, no Tribunal Plenário e no Tribunal Militar Especial. Representou a família do General Humberto Delgado na investigação do assassinato daquele antigo candidato à Presidência da República, tendo contribuído decisivamente para desvendar as circunstâncias e denunciar as responsabilidades nesse crime cometido pela polícia política de Salazar (PIDE).

 

A década de 1950 encontra-o como membro da Resistência Republicana e Socialista, e, em 1961, é redator e signatário do Programa para a Democratização da República. Foi candidato a deputado pela Oposição Democrática, em 1965, e pela CEUD, em 1969. A 19 de Abril de 1973, no Congresso realizado em BadMünstereifel, na Alemanha, a Acção Socialista Portuguesa, que fundara em 1964, transformou-se em Partido Socialista, tendo Mário Soares sido eleito Secretário-Geral e sucessivamente reeleito no cargo ao longo de quase treze anos.

 

Pós-25 de Abril

 

Em 25 de Abril de 1974, Mário Soares estava no exílio em França, de onde regressou a Portugal no dia 28, tendo chegado a Lisboa no depois chamado “comboio da liberdade”.

 

Nos primeiros três Governos Provisórios foi Ministro dos Negócios Estrangeiros, tendo iniciado as negociações do processo de descolonização; no quarto Governo Provisório, foi Ministro Sem Pasta. Foi, ainda, deputado por Lisboa na Assembleia Constituinte, em 1975, e participou em todas as legislaturas até ser eleito Presidente da República, em 1986. Foi Vice-Presidente da Internacional Socialista de 1976 a 1986, tendo chefiado várias missões daquela Organização ao Médio Oriente, a Nicarágua e a África. Foi Primeiro-Ministro do I e do II Governos Constitucionais (1976-78). Liderou a Oposição, de 1978 a 1983, e foi nomeado de novo (1983-1985) Primeiro-Ministro do IX Governo Constitucional. Iniciou as negociações do processo de adesão à CEE em 1977.

 

Durante a vigência do seu cargo como Primeiro-Ministro no II Governo Constitucional (1978), foi necessário enfrentar e resolver uma situação de quase ruptura financeira e de paralisia das atividades económicas do país, ultrapassada mediante a aplicação de um programa de estabilização e rigor, negociado com o FMI, graças ao qual foi possível celebrar um “grande empréstimo” e voltar a pôr a economia a funcionar. Foi ainda durante o I Governo Constitucional que se procedeu à integração, com pleno êxito, de quase um milhão de portugueses retornados das ex-colónias. Após nova dissolução da Assembleia da República, ocorrida em 1983, e na sequência das eleições legislativas que voltaram a dar a vitória ao PS, foi nomeado Primeiro-Ministro do IX Governo Constitucional, com base numa coligação partidária PS/PSD (1983-85). Este Governo viu-se confrontado também com uma dramática situação financeira e uma crise generalizada, que o levaram a pôr em prática um novo plano de emergência e recuperação que restabeleceu os equilíbrios financeiros externos.

 

Coube ainda ao IX Governo Constitucional ultimar o processo de adesão de Portugal à CEE, conduzir as últimas negociações e assinar o Tratado de Adesão, em Junho de 1985. Em Janeiro de 1986, tornou-se o primeiro Presidente civil eleito diretamente pelo povo, na história portuguesa, tendo sido reeleito em 1991 para um segundo e último mandato de cinco anos. Tornou-se membro do Conselho de Estado desde 1996, por inerência. Ainda nesse ano, assumiu a presidência da Fundação que havia sido fundada em 1991 com o seu nome e em 1997 foi eleito presidente da Fundação Portugal-África. Em 1999 foi eleito Deputado ao Parlamento Europeu, tendo cumprido toda a legislatura (1999-2004). Em 2006 concorreu, de novo, a Presidente da República, pelo PS, tendo perdido as eleições para Aníbal Cavaco Silva. Desde então, dedicou a sua vida e o seu tempo à Fundação Mário Soares, a diversas intervenções públicas sobre a atualidade nacional e internacional, assim como à escrita, tendo editado “A crise. E agora?” em 2005, pela Temas & Debates, e, em 2011, “Um político assume-se – Ensaio político e ideológico”, pela mesma editora, e “No Centro do Furacão – Reflexões sobre a Europa e Portugal em Tempos de Mudança”, pela Objectiva.

 

A sua atividade literária e ensaística foi muito prolífica durante toda a sua vida, tendo dado à estampa mais de duas dezenas de obras, entre as quais o emblemático “Portugal Amordaçado”, publicado em 1974 em Portugal, mas inicialmente editado em França, pela Calman-Levy, em 1972, sob o título “Le Portugal Bailloné”, e no ano seguinte em Inglaterra (sob o título “Portugal’s Struggle for Liberty”), Alemanha, Espanha, Venezuela e China. Durante a década de 1986/96, foram igualmente editados dez volumes de “Intervenções”, com textos seus enquanto Presidente da República. Nos últimos anos da sua vida, Mário Soares dedicou-se por inteiro à Fundação com o seu nome, uma ideia que surgiu “no início do meu segundo mandato como Presidente da República”, conforme revelou em entrevista à revista Nova Gente em Junho de 1996.

 

“Primeiro, porque da campanha eleitoral resultou um saldo apreciável que pôde ser adjudicado à Fundação; depois, porque tinha um acervo imenso de documentação, reunido ao longo de mais de 50 anos, que gostaria de abrir ao estudo dos investigadores da história contemporânea portuguesa”.

 

No estrangeiro

 

Como Secretário-Geral do PS e Vice-Presidente da Internacional Socialista – cargo para que foi eleito no Congresso de Genève, em 1976, e depois sucessivamente reeleito até ser nomeado Presidente Honorário em 1986 – Mário Soares desenvolveu uma intensa atividade internacional. Foi presidente das Comissões da Internacional Socialista para o Médio-Oriente e para a América Latina, tendo realizado várias missões àquelas zonas, assim como à África Austral. Participou em numerosas negociações, encontros, colóquios, congressos e missões no quadro da Internacional Socialista e fora dele. A sua importante atividade internacional começou a desenvolver-se logo após a revolução do 25 de Abril, como Ministro dos Negócios Estrangeiros dos primeiros três Governos Provisórios, tendo estabelecido relações diplomáticas com todos os países do Mundo e promovido o início oficial do processo de descolonização nos encontros de Dakar, com Aristides Pereira, antigo Presidente da República Popular de Cabo Verde, e de Lusaka, com Samora Machel, malogrado Presidente da República Popular de Moçambique.

 

Da sua atividade como Primeiro-Ministro, destacam-se o impulso inicial dado ao processo de adesão de Portugal à CEE, em Março de 1977 (I Governo Constitucional), o começo das negociações com o FMI para a recuperação da economia portuguesa (II Governo Constitucional) e a consagração da opção europeia com a assinatura, em simultâneo com a Espanha, do Tratado de Adesão, em 12 de Junho de 1985 (IX Governo Constitucional). Como Presidente da República, defendeu intransigentemente o respeito pelos direitos dos homens e dos povos, de que Timor-Leste constituía então uma referência portuguesa dramática, tendo-se destacado a frontalidade assumida em visitas oficiais e cimeiras de Chefes de Estado e de Governo na denúncia dos regimes que se afastavam do modelo proposto pela Carta da ONU para o desenvolvimento e a intervenção permanente no sentido de a dimensão atlântica encontrar forma numa comunidade de povos de expressão portuguesa, reaproximando o Brasil dos novos conceitos estratégicos nacionais.

 

Foi o governante português que mais viagens de Estado protagonizou e quase se tornam incontáveis as distinções internacionais e os doutoramentos “Honoris Causa” que colecionou ao longo da sua vida, nada menos que 36, de universidades tão díspares como Toronto, Santiago de Compostela, Hankuk, Osnabrück, Bruxelas ou Trinity College. Entre outros, foram-lhe atribuídos o Prémio da Liga Internacional dos Direitos do Homem, entregue pelo embaixador dos E.U.A. junto das Nações Unidas, Andrew Young, em Nova Iorque (Abril de 1977); Prémio Joseph Lemaire (Bruxelas, 1975); Prémio Robert Schuman (Estrasburgo, 1987); Prémio Principe das Astúrias (Oviedo, 1995); Prémio Carmen Garcia Bloise (Madrid, 1996); Prémio Gaivota de Prata (Nápoles, 1996); Prémio Toghether for Peace Foundation (Roma, 1997); Prémio Louise Weiss (Paris, 1997); Prémio Adolph Bentinck (Bruxelas, 1997); Prémio Internacional Simón Bolivar (Paris, 1998); Medalha de Honra da Universidade George Washington (Washington, 1998); Medalha de Ouro do Instituto Stresemann (Mainz, 1999); Medalha de Honra da Fundação Robert Schuman (Paris, 2000); Medalha de Ouro da Universidade de Berkeley (S. Francisco, 2000); Prémio Norte-Sul (Lisboa, 2000); Troféu Goya (Madrid, 2000); Prémio Orseri per il Dialogo (Roma, 2001); Prémio Especial Club Internacional de Prensa (Madrid, 2001); Medalha de Mérito Farroupilha (Rio Grande do Sul, 2004); Troféu Latino (Lisboa, 2005); Comenda Terras Irmãs (Cataguases, 2005) e Medalha de Ouro da Assembleia da República para os Direitos Humanos (Lisboa, 2008). Em Portugal, entre outras distinções, foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo, em 1981; com o Grande Colar da Ordem Militar Torre e Espada do Valor, Lealdade e Mérito, em 1991, e, em 1996, com a Ordem da Liberdade.

 

A sua vida pessoal sofreu o maior revés a 25 de junho de 2015, quando Maria Barroso, o grande amor da sua vida, foi internada no Hospital da Cruz Vermelha, na sequência de uma queda em casa, vindo a falecer a 7 de julho. O seu funeral realizou-se no dia seguinte para o cemitério dos Prazeres, em Lisboa, e desde aí o estado de saúde de Mário Soares nunca mais foi o mesmo, tendo piorado irreversivelmente, até culminar agora, com a sua morte. Para final, não podemos deixar de transcrever parte de um texto publicado na revista Nova Gente em 1996, aquando do final das duas Presidências de Soares: “A Soares, de tantas coisas que fez, algumas lhe podem ser reprovadas, no balanço final. Mas a ninguém passará pela cabeça acusá-lo de, nestes anos, ter aborrecido Portugal. Oxalá o exemplo cresça e se multiplique, como diz a Bíblia, que é boa citação para a despedida presidencial de quem se quis ‘socialista, republicano e laico’, mas que esteve no poder como se nele tivesse nascido, com o à-vontade e a soberania de um rei; que entrou na política como quem entra em religião, totalmente e para sempre; e que ama, milionariamente e sem remorsos, as coisas boas da vida. Presidente Soares, au revoir!”

 

Texto: Luís Peniche; Fotos: Impala e DR

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