Toda a gente conhece José Cid e muitas das músicas que escreveu ao longo da sua carreira acompanharam diversas gerações deste país.
Agora, tem um novo álbum, Menino Prodígio, a marcar com uma sonoridade rock que remete para os primeiros tempos da sua carreira.
Também Daniel Proença de Carvalho é conhecido da generalidade dos portugueses, tendo feito uma carreira de sucesso na advocacia e sendo atualmente o presidente do Conselho de Administração da Uria Menéndez – Proença de Carvalho & Associados. Mas também passou pela política, tendo chegado a ser ministro nos governos de Ramalho Eanes e Mota Pinto, foi administrador da RTP, e é presidente da Cimpor, da Controlinveste e da ZON Multimédia, entre outras. E tem uma vida ligada à música, embora atualmente apenas como hobby e escape para o stress.
O caminho destas duas personalidades da vida nacional cruzou-se no final da década de 50, em Coimbra, onde integraram o Grupo de Jazz do Orfeon Académico, juntamente com Joaquim Caixeiro (médico ortopedista de renome), José Niza e Rui Ressurreição (estes dois já falecidos). De vez em quando juntam-se para recordar os velhos tempos em palco. Foi o que fizeram recentemente em Coimbra e a VIP juntou Proença de Carvalho, Cid e Joaquim Caixeiro à conversa, para relembrar esses tempos.
O encontro decorreu em casa de Proença de Carvalho e José Cid trouxe consigo uma gravação de 1958 feita na inauguração do Teatro Gil Vicente. E começou logo a disparar: “Põe a tocar esta relíquia, para veres que dávamos uma banhada às bandas todas que vinham de fora, Marino Marinis e companhia.”
José Cid continua a recordar que o maior êxito foi nessa inauguração, mas, logo a seguir, “tivemos um grande sucesso em Salamanca. Aí nós arrasámos… Fomos tocar jazz e bossa nova e os espanhóis não tinham nada disso na altura. Os franceses é que adotaram a bossa nova, mas muito depois de nós”...
Sobre o início desta banda, Daniel Proença de Carvalho relembra que, “como sempre na vida, há várias coincidências. Em Coimbra há sempre renovação, as pessoas estão ali, estudam e depois vão às suas vidas. Acontece que, de repente, o cantor que estava nesse grupo deixou de estar, o pianista também não, praticamente teve de se refazer o grupo”... E José Cid complementa: “Os Babies (o anterior grupo onde tinha tocado) tinham acabado, o Igrejas Bastos (vocalista e baterista) tinha vindo para Lisboa e era um pouco o suporte da banda. Conclusão, os Babies estavam assim um pouco em modo de paragem, quando de repente”…
Eis que Joaquim Caixeiro interrompe: “Vocês não estão a contar isso bem. Esses grupos já estavam meio desfeitos e houve uma época em que uma série de grupos de teatro estrangeiros queriam que no fim do espetáculo houvesse baile. Andámos então a fazer uma seleção das pessoas que lá estavam e começámos com o Orfeon”... Proença de Carvalho remata: “Depois formámos o grupo que está a tocar neste espetáculo, com o maestro Rui Ressurreição, que, mais tarde, fez uma boa carreira como produtor musical e chegou a ser administrador na RTP, comigo. Era um grande músico, mas tinha um grande problema: achava que a música portuguesa não tinha qualidade e não nos deixava tocá-la. Claro que isso chocava com o talento do José Cid”…
José Cid confirma a importância de Ressurreição para o sucesso do Orfeon: “Era o nosso guru, ele mandava e nós obedecíamos. Era um guru pela positiva. Essa coisa de haver ditadores é muito bom, quando os ditadores são bons; agora quando o ditador não presta, é do pior que há.” Já Proença de Carvalho é obrigado a insurgir-se contra o amigo: “Eu aqui não concordo totalmente com o Zé. Tenho uma ligeira divergência e tenho de ser mais politicamente correto.” Joaquim Caixeiro aproveita a deixa e faz um remoque a Cid: “Tu fazias tantas birras, que se não fosses tão bom o Rui tinha-te posto fora.” “Eu?”, responde Cid. “A única birra que tive foi quando o Rui me quis pôr fora da banda porque eu queria ir namorar. Foi a minha primeira mulher! Houve um período em que saí do grupo, mas regressei passado pouco tempo, também não tinham substituto à altura!”
E a tarde passou com o desfiar de memórias divertidas desse tempo, como, por exemplo dos primeiros tempos em que Cid tocou com os Babies e usava luvas para não ferir os dedos nas cordas do contrabaixo, ou a passagem pelos respetivos cursos na Universidade de Coimbra, em que o cantor abandonou o curso de Direito ao fim de pouco mais de um ano, mas o amigo Daniel Proença de Carvalho concluiu com distinção ou ainda os problemas que, mais tarde, sofreram com a censura do antigo regime.
Para José Cid, “era uma censura cega, mas inspiradora, porque os censores obrigavam-nos a escrever de uma forma subreptícia, simbólica. O melhor exemplo disso era o José Carlos Ary dos Santos, eu era mais direto e contundente. Eu e o Adriano Correia de Oliveira assumimos, em relação às nossas editoras que nos responsabilizávamos pelos poemas que cantávamos. Mais ninguém o fez. (…) Por exemplo, o José Afonso percebeu que a censura e o regime podiam parar a carreira das pessoas e obedeceu à circular que o Secretariado Nacional de Informação mandou para as editoras”, revela o cantor.
Foi tempo ainda de lembrar o primeiro festival de jazz organizado em Portugal, em Coimbra, mas que não perdurou para a História, pois foi ofuscado de seguida pelo Cascais Jazz e, aqui, as memórias perderam-se pelos monstros sagrados que por lá passaram, como Miles Davis ou Keith Jarret que fez José Cid dizer na altura que nunca mais tocava piano depois de assistir ao seu concerto…
E a tarde continuou com o ensaio do Grupo de Jazz do Orfeon Académico de Coimbra, mais de 50 anos depois, porque dois dias depois tinham concerto em Coimbra. E afinados, com tempos certos, ninguém diria que estavam há décadas sem tocarem juntos regularmente…
Texto: Luís Peniche; Fotos: Paula Alveno
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