É um dos mais conceituados apresentadores portugueses. Com uma personalidade vincada, não tem dúvidas em assumir-se como “muito bom” naquilo que faz. Vive “muito bem” com as pessoas que o rodeiam e… consigo próprio. Sem preconceitos, não admite que o ataquem e menosprezem. Uma juíza considerou que se metia a jeito de piadas homofóbicas porque usava vestuário de cores conotado com o sexo feminino. Apresentou queixa contra o Estado português. Esta entrevista é uma viagem ao epicentro da família Goucha. E que viagem!
VIP – A 7 de novembro tornou-se tio-avô. Quase a fazer 60 anos (a 25 de dezembro), nunca teve ciúmes da vida “normal” do seu irmão? Ele fez tudo como manda a tradição: casou, teve filhos, agora netos…
Manuel Luís Goucha – Não. Esta é a vida que eu escolhi, não foi a vida que me escolheu. Isso nunca me entusiasmou. Sempre quis ter a minha vida, construída com os meus interesses, com aquilo que achei que era a minha vocação.
É avesso a padrões?
Sou um pouco avesso a regras. Não vou em “carneirada”, mas não julgo a vida de ninguém, pois também não acho piada a que julguem a minha. Não quero ser igual a ninguém. Com dez anos cheguei a casa e disse à minha mãe: “Que estranho, na catequese disseram que somos todos iguais e acho que somos todos diferentes”. A ideia de que a minha forma se extraviou no fabrico agrada-me.
Na infância era assim tão diferente?
Não. Foi uma infância tranquila, muito metido comigo próprio. Aprendi muito bem a viver comigo. Limpo as memórias más, mas sempre fui feliz a brincar comigo, olhar para a televisão como se fosse uma câmara e a entrevistar pessoas imaginárias.
Nunca se sentiu incompreendido?
Não, não. Isso já é uma posição de superioridade. E não estou nada preocupado para que me compreendam. Claro que tive as minhas dúvidas, as crises existenciais. Eu é que tenho de me entender. Aí há 20 anos tive uma depressão, fiz psicanálise e é uma ferramenta poderosa.
Nas entrevistas que inventava, falava com as pessoas em francês. Onde aprendeu francês?
Aprendia-se francês com nove anos. Na década de 60 a cultura francesa dominava a Europa. Escutava música francesa e tinha uma professora que foi marcante, a única de quem me lembro o nome: Dora Freire. Era o protótipo da mulher francesa – saia e casaco Chanel, camélias na lapela – e dava as aulas de forma entusiástica. Tanto que a primeira vez que fui a Paris, aos 29 anos, senti que conhecia a cidade através dos olhos e das aulas daquela professora. Nas entrevistas, fazia as perguntas e dava as respostas. Era esquizofrénico [risos].
Falou-me das roupas e de pormenores dessa professora. Já ligava muito à estética?
Sempre gostei de coisas e pessoas bonitas. A minha mãe era, e é, bonita e lembro-me de roupas e pormenores visuais. Sempre questionei. Gostava de ir à missa pela representação que entendia. Aliás, não entendia nada, pois era em latim. O padre estava de costas. Nunca fui uma pessoa de fé. Talvez porque não gosto que me imponham nada. Imporem-me um Deus que não apalpo, não vejo, não tem textura faz-me muita confusão. Não me basta acreditar em Deus porque sim.
Mas acredita em alguma religião?
Na vida, nas pessoas e na ciência.
Os seus pais separaram-se quando tinha três anos. Na escola, o que preenchia na parte do nome do pai?
Luís Filipe Fernando Batista Goucha. Escrevia na maior das calmas. Via o meu pai, muito espaçadamente, quando ia a Coimbra e nos requisitava para almoçar. Nunca foi problema ser filho de pais separados. Não tenho memória dos meus pais juntos e não posso ter saudades de uma coisa que não tive. Sempre achei graça ter mãe, pai, madrasta e padrasto. Mas a minha mãe não lidou bem com a rejeição. Houve ali sempre uma relação de amor ferido e ódio, alimentada ao longo dos anos.
De alguma forma, nunca teve uma relação com o seu pai para não entristecer a sua mãe?
Não acredito que uma relação entre pai e filho comece aos 21 anos, quando faltou dar colo, puxar os lençóis, tirar a febre, assoar o ranho.
Era menino da mamã?
Sim. Sou muito parecido com ela, no bom e no mau. Aprendi o gosto do cinema com ela, lembro-me de ela devorar livros de romances até às cinco da manhã, fazer diretas. O lado sensível é dela. Terei herdado do meu pai – construí um pai que não sei se foi assim – o lado de gozar a vida. A minha mãe sempre se preocupou em trabalhar muito, muito, para que nada faltasse aos filhos. Já eu, sempre quis ter esta vida, trabalhar muito para ser muito bom no que faço. E sou muito bom. A relação com a minha mãe tornou-se muito mais umbilical. Quando se separou disse que me levou para a sua cama, porque era o homem da sua vida.
Parece que havia um complexo de Édipo em todo o seu esplendor.
Talvez tenha havido quando tive de dividir a atenção da minha mãe e o amor com um padrasto de quem nunca gostei. Nunca o tratei por padrinho, padrasto, nem nada. Foi sempre o senhor Braga, para manter a distância. Não com a força de um complexo edipiano, mas claro que vivi apaixonado pela minha mãe.
E como reagiu quando a sua mãe, aos 74 anos, admitiu que havia traído o seu pai com um violinista?
Com muito orgulho. A minha mãe não tem dono, faz o que quer. Os filhos não têm o direito de julgar. Aquilo que chocou o meu irmão – é muito diferente –, foi para mim muito interessante. Aquilo que atiraria qualquer pessoa para um divã de um psicanalista, entusiasmou-me muito.
Foi atrás do violinista?
Não. Digo à minha mãe: “Deixa escrito de quem sou filho” [risos]. Chegar à conclusão que afinal não era Goucha, era maravilhoso. Julga que tenho problema? Não, é teatral. Se a minha mãe traiu, fez muito bem. Pelos vistos, foi toda a vida traída.
Depois do recente incidente com a sua mãe, ela foi viver consigo. Tem corrido bem?
Só falei da minha mãe nessa altura para responder a uma capa de revista, pois achei que era demais. Já lhe dei os parabéns por ter feito algo que nunca consegui, que foi o pleno nas capas das revistas. Disse-lhe: “Tu queres é aparecer” [risos].Tudo isto é levado com muita graça. Nada foi um drama. Está a viver comigo há mais de um mês, está ótima e só me diz que quer ir para casa. Retirar os velhos – palavra que merece toda a dignidade e respeito porque ser velho é ser sabedor – do seu ambiente é matá-los.
A sua mãe tem 91 anos. Quando o telemóvel toca, tem medo da notícia que possa vir aí?
Não. A morte da minha mãe é algo cada vez mais presente na minha vida. Vai acontecer, mas pode ser só aos 100. Fez todos os exames que se possa imaginar – venceu um cancro da mama em 15 dias –, e está tudo ótimo. A nossa relação sempre foi de grande transparência, total cumplicidade e tenho consciência de que sou um filho exemplar. Terei poucos defeitos ou nenhum. Apareceu-lhe o cancro, ela escolheu a médica, a clínica, e foi resolvido em 15 dias. Nem na televisão se soube. Acabei o programa, meti-me no carro até Coimbra, estava fantástica, cinco dias depois estava em casa. E tive sorte de poder colocá-la na medicina privada, pois não tenhamos ilusão: no Serviço Nacional de Saúde, ainda hoje estariam à espera para operar uma pessoa de 91 anos.
Está preparado para o dia em que lhe faltar?
Estou tranquilo. Claro que será um grande desgosto. É a minha matriz que se perde, mas, por outro lado, tenho o privilégio de a ter tido, com todas as suas qualidades e defeitos, e com tudo aquilo que lhe acrescentei, que inventei para ela.
Inventou? É muito diferente da verdadeira?
É, é. Era invencível. Saí de casa com 17 anos.
Foi a pior fase da vossa relação?
Possivelmente sim. Um conflito de gerações. Só soube muitos anos mais tarde que foi um grande desgosto. Mas sair de casa com 17 anos e ter ido à procura da minha vida, é o meu grande feito. A partir desse momento, fui colocando camadas de coisas em cima da minha mãe: a mulher invencível, que não tem doenças, que não é frágil. E é ela que um dia me chama a atenção. Tinha um problema num olho e disse-me: “Acho que já não gostas tanto de mim porque estou a ficar velha”. Isso chamou-me a atenção. Meu Deus, a minha mãe é frágil, não é a supermulher que criei. Foi muito angustiante. Um choque. Nem dormi nessa noite. Isto é quase esquizofrénico, criar uma mãe sobre a minha mãe. Coloquei-lhe camadas de coisas.
Deve ter ficado dececionado.
Não, a culpa era minha. Hoje sei perfeitamente o que ela é, onde é frágil, onde tem defeitos.
E em relação ao seu pai?
Hoje, sou capaz de gostar mais dele porque o fui criando a partir de coisas que me lembro, que ouço daqui e dali. É capaz de não corresponder ao pai real, mas tem coisas que me agradam.
Disse que foram das primeiras pessoas a ter televisão. Tinham uma boa vida?
Nada nos faltou. A minha mãe trabalhava à percentagem. Quanto mais trabalhava, mais ganhava. A ideia que tenho dela é a de que saía e entrava em casa connosco a dormir. Nunca nos faltou nem jardim-escola, nem boa roupa. Tínhamos uma costureira que a fazia. A minha mãe nem fazia parte da classe rica, nem à pobre. Estava no lote dos remediados.
Passou pior quando foi para Lisboa.
Ainda bem. Estava por minha conta e risco. Isso é maravilhoso.
Foi trabalhar para o escritório de um tio, irmão da sua mãe, e ficou em casa de uma tia, pois estavam separados. O que se passava na sua família que todos se separavam?
Não conheci a minha avó paterna, conheci a terceira mulher do meu avô paterno – que morreu há pouco tempo. Os meus tios do lado da minha mãe e do meu pai foram todos separados.
Aqui o estranho é o seu irmão…
É casado há 25 anos mas ainda vai a tempo de se separar [risos]. Não, porque a mulher dele é maravilhosa. Tenho muito apreço pela Isabel porque é muito trabalhadora – como o meu irmão – e conseguiu licenciar-se trabalhando. É um exemplo de vida. As pessoas são muito levianas a falar da vida das figuras públicas. Acham que nos conhecem, mas de mim só conhecem o Goucha profissional. Estou-me nas tintas para isso, mas algumas podem estranhar a minha maneira de ser desprendida. A minha família sempre foi constituída por quatro gatos-pingados: mãe, avó, irmão e eu…
Tem pena?
Não. Tinha pena se tivesse tido, tivesse gostado e agora não tivesse. Não tenho pena do que não tive. Criei o meu modelo de Natal, que é bem mais interessante. Quando comecei a estar por minha conta e risco e a puder sair do País, a criar a minha noite de Natal com a minha mãe ou sozinho, era diferente mas muito mais divertido. Talvez também por isso não tenha tido apetência para criar o tipo de família que as pessoas estariam à espera. As pessoas são um somatório de experiências e vivências e muito daquilo que são na infância e adolescência. O que somos na casa dos pais.
Mas o seu irmão é muito diferente de si.
Pois é. Mas entendeu essas vivências de forma diferente. Deixou-se cativar, por exemplo, pelo lado do padrasto, que foi um pai para ele.
Arrisco a dizer que alguns dos Natais que passou sozinho foram dos melhores para si.
Nunca passei o Natal sozinho. Passei muitos comigo. Sou felicíssimo comigo. Estou a lembrar-me de um que passei em Amesterdão, num concerto em que fingia que cantava. O que eu me diverti. Devia ser dos poucos turistas, não sei holandês e fingia que cantava, ou seja, só mexia a boca. Lembro-me que muitas canções seriam religiosas e terminavam com o Ámen. Então era a parte que eu cantava em alto e em bom som. Até que houve uma que não terminou e só eu me fiz ouvir. Que vergonha! O que me diverti! Já passei um Natal a comer rancho com feijão na Euro Disney, naquele pavilhão do Búfalo Bill. Olhe, com o meu sobrinho que teve agora o filho. O rancho comemo-lo à meia-noite, mas uma hora antes chovia muito e nós perdidos no labirinto da Alice no País das Maravilhas. Querem melhor Natal? Não sofro de solidão. Passei Natais com a minha mãe, dez ou 11 com o Rui, com outras pessoas, mas muitos comigo. Quando vivia sozinho no Porto, a viver comigo, tinha rituais de Natal que ainda cumpro.
Leia a entrevista completa na edição número 908 da VIP
Texto: Humberto Simões; Fotos: José Manuel Marques; Produção: Manuel Medeiro
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