A chama dos seus olhos acende-se quando pronuncia o nome do líder. Jornalista há três décadas, não disfarça que foi contagiado pelo que ele próprio chama o “vírus Nelson Mandela”.
António Mateus foi o jornalista português que mais privou com o líder africano e é, certamente, um dos que melhor conhecem a sua família e o seu núcleo de amigos. Autor de Mandela – A Construção de Um Homem, conheceu o primeiro presidente da África do Sul após o apartheid quando, em 1990, era chefe da delegação da Lusa em Moçambique e foi chamado a Joanesburgo para cobrir a libertação do homem que havia sido condenado em 1964 a pena de prisão perpétua por, como afirmou em tribunal, lutar por “uma sociedade livre e democrática, na qual as pessoas vivam juntas em harmonia e com oportunidades iguais”.
Apareceu uma pessoa que não viam há décadas, que ninguém conhecia e que tinha mudado muito. “Os seus amigos descreviam-no como uma pessoa temperamental, violenta, promíscua, egocêntrica… e depois saiu aquela coisa, exatamente o oposto. Nós perguntávamos-lhe como foi possível fazer aquele caminho, e ele dizia que, durante o tempo em que esteve na prisão, pôde olhar para si e ver como era imperfeito.
Portanto, quem era ele para julgar as imperfeições dos outros, quando ele próprio é imperfeito?”, diz, prosseguindo: “Então, começou a transformar-se a si próprio, a fazer aquela viagem interior para tentar ser melhor todos os dias, tentar fazer a diferença, começando por si próprio. E isso é um percurso de vida que cada um de nós pode fazer, se quiser. Porque, quando ele pratica isso todos os dias, nós todos, que andamos à volta dele, sentimos quase vergonha de não fazer o mesmo esforço. É este contágio redentor que o torna extraordinário.” O jornalista confessa que o contacto com o líder é absolutamente transformador.
“É uma pessoa extraordinária pela maneira como nos faz sentir, a cada um de nós, a pessoa mais importante do Mundo, porque nos dedica atenção total e sorri sempre, quando fala com as pessoas”, afirma, acrescentando: “Faz-nos deslocar o centro do Mundo de nós para o outro. É um pouco o que acontece quando somos pais, porque passamos a ter alguém que depende do nosso amor e nós passamos para segundo lugar das nossas prioridades. O Nelson Mandela pratica isto por escolha própria.”
Apesar de ter estado preso durante 25 anos por lutar pelos direitos do seu povo e contra o apartheid, o repórter garante que não sobraram quaisquer réstias de ódio no coração do pacifista que, no entanto, era capaz de dar um murro na mesa quando era necessário. “Ele é um líder e um líder faz escolhas, às vezes erradas. Isso também era extraordinário na liderança dele.
Ele não descartava a responsabilidade das suas escolhas, exercia o cargo público com a humildade de quem serve o povo, especialmente os mais fracos, e com a consciência absoluta de que quem tem um cargo público tem o privilégio, delegado pelos outros, de gerir a causa pública. Portanto, tem uma responsabilidade que exerce com amor, não com apropriação.” Por isso, o líder africano, que recebeu o Prémio Nobel da Paz em 1993, vendo reconhecida a sua luta a nível mundial, fazia questão de ouvir todas as opiniões.
“Ele estimulava os jornalistas a criticarem-no, sem pudor, porque sentia que era assim que melhor podia explicar o caminho que queria tomar. E se não fosse válido, a única forma de o testar era no confronto de ideias. Portanto, ele exercia de facto o confronto democrático de ideias.“
António Mateus acabou por ficar quase duas décadas na África Austral. Depois de Moçambique, foi chefe da primeira delegação da Lusa na África do Sul e acabou, por coincidência, por fazer o mesmo percurso que Graça Machel – a primeira-dama de Moçambique que, depois da morte de Samora Machel, se casaria com Mandela, tornando-se a sua terceira mulher. “Entrevistei-a pela primeira vez quando era ministra da Educação e também ela era uma mulher muito diferente do que é hoje.
Era irascível, estava magoada. Samora tinha acabado de morrer e ela culpava os portugueses por tudo, até por chover. Atualmente, é uma pessoa com um discurso completamente diferente, é humanista e humanizadora”, garante. Na África do Sul, o jornalista conheceu a mulher, sul- africana, e os seus dois filhos, de 12 e 14 anos, têm dupla nacionalidade.
Acabaria por regressar a Portugal em 2000, por opção editorial da televisão pública, mas regressa frequentemente. Retirado da vida pública desde 2004, o eterno presidente deixou de pronunciar- se sobre o seu país, mas António Mateus sabe que, apesar de não estar “agradado com a maneira como os seus sucessores foram perdendo as baias morais e éticas”, olha para eles como um avô olha para os erros dos netos.
Afinal, é assim que o povo o chama: Khulu, que em xhosa, a língua da sua tribo, significa “avô”, ou Tata, que significa “pai”. De resto, concorda plenamente com Peter Gabriel, que disse, em tempos: “Se a humanidade tivesse de escolher um só pai, esse pai seria certamente o Nelson Mandela.” Internado desde 8 de junho em Pretória, Nelson Mandela, de 94 anos, estava, à hora de fecho desta edição, em estado crítico.
Preocupado com o futuro do país pelo qual se apaixonou, António Mateus admite que poderão ocorrer fenómenos violentos, mas vê com esperança o regressou à vida política de Cyril Ramaphosa, companheiro de Mandela. E quando morrer aquele que considera o “único presidente”, quer homenageá- lo. “Ele deixou-nos uma herança, a nós que o vimos, que sabemos ao que ele cheirava e como sorria para cada um de nós… eu vou escolher celebrar a vida de Mandela, em vez de fazer o luto da sua morte. É o melhor gesto de amor e reciprocidade que lhe posso dar”, conclui.
Texto: Elizabete Agostinho, Fotos: Paulo Lopes, DR, Impala e Reuters
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