Nasceu numa família de fadistas. E após uma hepatite, que o obrigou a ficar fechado em casa durante um mês, quando tinha sete anos, trocou os Beatles pelos vinis de Alfredo Marceneiro e Amália. Estava descoberta a sua vocação, a sua razão de vida, porque o fado é como o amor, não se explica. Camané acredita que agora é mais fácil aparecerem fadistas porque quando começou nem a rádio nem a televisão queriam saber deste género musical que, no ano passado, foi considerado Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO.
VIP – O seu último trabalho Do Amor e dos Dias é uma viagem quotidiana pelo mundo dos afetos?
Camané – No fundo, há sempre uma interligação com o nosso dia-a-dia, com os nossos sentimentos. Teve como referência os fados do Alfredo Marceneiro que contavam estas histórias, mas de uma forma irónica.
E como é que os seus sentimentos pessoais se confundem com estas histórias de amor e raiva?
Este disco fez-me crescer internamente porque tive de encontrar esses sentimentos.
E o Camané é um homem que consegue amar todos os dias?
Tento viver e estar ligado às coisas, umas vezes com amor, outras com ódio, outras com ironia ou tristeza.
E amor e fado são justamente duas áreas que se tocam por serem algo de inominável…
Sim, o amor é uma coisa de difícil de definir. E o fado também.
Mas o que, hipoteticamente, seria mais fácil de definir?
É difícil… Mas se calhar seria mais fácil definir o fado, porque é uma forma de expressão, uma coisa característica. O amor é mais importante, mas…
Afinal o que é o fado?
O amor não sei o que é e o fado também não (risos). Mas sei que é uma coisa que faz parte de mim. Cresci no meio do fado, o meu avô cantava fado, por isso eu tenho fado. Mas explicar o que é o fado não sei. Tal como não sei explicar o amor.
Se pensarmos no significado de fado como destino, no seu caso, como referiu, já havia realmente essa predisposição genética…
Sim, há uma herança biológica. Mas também podia não ter acontecido.
Foi por causa de uma doença em criança que começou a cantar fado.
Precisamente, tinha sete anos. Tinha três discos que ouvia sempre, um do Sinatra, outro do Aznavour e outro dos Beatles, mas por causa de uma hepatite tive de ficar um mês em casa e foi então que comecei a ouvir fado. Decorava as músicas e aprendi a cantar aqueles fados.
E uns anos mais tarde, com as pressões da idade, não começou a sentir-se menos cool em relação aos amigos por causa de cantar e ouvir fado?
Imenso, imenso. Houve uma altura que gozavam imenso comigo por cantar fado. Era um tipo esquisito, um outsider e os meus amigos não se identificavam com aquilo de que eu gostava.
Mas acabou por fazer as pazes com os amigos?
É engraçado que tive um reencontro com a minha geração através do fado, a partir do segundo disco, em 1997. Eu cantava com uma entoação, com um estilo diferente e os meus amigos perguntavam: “Mas estás a cantar fado?” E foi bom porque acabei por encontrar o meu estilo próprio porque às vezes somos cantores, mas não sabemos aquilo que queremos.
Na juventude começou a ficar claro que tinha de cantar…
Eu já tinha “aquilo” em mim. Eu já sabia que queria cantar. O mais importante foi descobrir um estilo, um caminho, não precisar de andar à procura. Mesmo coisas que fiz paralelamente o fado passou sempre a ser o meu caminho. Repare que há cantores que não se conseguem encontrar.
O fado agora está na moda…
Quando eu comecei era muito mais complicado. Era eu, o Paulo Bragança, a Mísia… não havia mais ninguém. Hoje em dia é realmente mais fácil, mas no início fui muito difícil. A rádio e a televisão não passavam fado.
Agora não há aquela ideia de que qualquer português sabe cantar fado?
Há uma ideia completamente errada de que qualquer português pode ser fadista. Não é nem pode ser verdade. Uma coisa é cantar uns fadinhos à tascazita, umas cantiguinhas, outra coisa é ir para dentro de um texto e conseguir agarrar o público com o poema e com a sua sonoridade própria.
E aquela situação, que veio com a moda, de as fadistas terem um estilo mais moderno? É que o fado tem uma indumentária clássica habitualmente…
Repare, o fado é uma música intimista e tem códigos próprios. Por exemplo, se tivermos uma fadista de minissaia vamos olhar para a minissaia, para as pernas. E isso faz perder o que é o essencial, que é a letra, a música e o canto.
E esta crise generalizada, com o aumento do IVA nos produtos culturais, preocupa-o?
Claro que as coisas não estão fáceis, mas também já houve momentos difíceis e ultrapassámo-los. Já canto fado, profissionalmente, desde os 18 anos, já lá vão 25, e já tive momentos melhores e piores. Claro que agora as coisas podem complicar-se muito, porque há a tendência para haver menos público quando ele é mais necessário. Ou conseguimos tocar fora de Portugal ou claro que é muito difícil.
Com o reconhecimento do fado pela UNESCO haverá uma maior promoção deste estilo musical?
O que tem acontecido é que nós, os artistas e os agentes, temos conseguido dar espetáculos lá fora. Há muito mais mérito dos artistas. E o facto de não haver dinheiro para pagar cachets e de não existirem bilheteiras, torna tudo cada vez mais difícil.
Muitos artistas têm-se reunido para tenta fazer face à situação. Tem-se juntado a esses movimentos cívicos de artistas? Tem ido a essas reuniões?
Sim, tenho ido a algumas. Temos conversado, mas a expectativa é muito negativa.
O que teria feito na vida se não fosse fadista?
Nem consigo equacionar. O fado entrou na minha vida e logo na adolescência encontrei o sentido no fado.
Ou seja, estava mesmo fadado a tornar-se fadista…
Acredito que as coisas quando têm de acontecer acontecem mesmo. Mas acontecem no seu tempo certo. Agora temos é de trabalhar para isso. Não sei se é destino ou não, mas acho que há qualquer coisa de destino nisto, sim. Há qualquer coisa que nos dá quando fazemos por isso.
Texto: Nuno Calado Costa; Fotos: Bruno Peres; Produção: Marco António; Maquilhagem: Vanda Pimentel com produtos Maybelline e L’Oréal Professionnel
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