A entrevista faz-se em pleno coração da cidade, na esplanada da Benard. O actor, habitué da mítica pastelaria, cumprimenta quem passa e lhe acena. Aos 57 anos, 36 de carreira, diz ter uma necessidade constante de recomeçar. Estreia-se assim na estrada, numa tournée que vai levá-lo às terras de Portugal, com a "casa às costas". "A velha ideia do actor saltimbanco é uma coisa que me fascina", explica.
VIP – Fale-me um pouco da peça Um, Ninguém e Cem Mil.
Virgílio Castelo – Este espectáculo foi pensado para fazer só na província, ao fim–de-semana. Quando cheguei ao teatro com 20 anos todos me falavam nas tournées, mas na minha geração deixou de haver dinheiro para o teatro e isso acabou. Portanto, quando surgiu a oportunidade de um jovem encenador querer fazer uma peça comigo, pensei que era a oportunidade de juntar as duas coisas: um espectáculo leve e barato e que pudesse andar pela província. Acontece que foi visto em Leiria pelo Hermano Maia, que é um produtor brasileiro, que gostou e quis apostar nele no Tivoli. Agora já está vendido para outros sítios e muito provavelmente, iremos ao Brasil. A peça está a ter uma vida para a qual não foi concebida.
Esse regresso à estrada está novamente a ser feito por muitos colegas…
Não sei qual é a razão deles, mas a minha é de ordem nostálgica. Aquela velha ideia do actor saltimbanco é uma coisa que me fascina completamente. Além disso, estar muito tempo sem fazer chateia-me. Felizmente tenho tido oportunidade de ir fazendo.
Como construiu Vitangelo Moscard, o personagem desta peça?
O Pirandello escreveu sempre muito sobre a busca da identidade… quantos "eus" temos, o que estamos aqui a fazer… e esta peça é essencialmente sobre isso. Este personagem é um banqueiro, filho de um banqueiro, casado com a filha de outro banqueiro e é alguém que está formatado para ter um determinado comportamento.
E quantos “eus” tem o Virgílio?
(Risos) Não sei, não sei… Acho que ninguém sabe, mas tenho uma coisa herdada claramente da minha mãe, que é o facto de ser um tipo com uma grande dificuldade de ficar a fazer muito tempo a mesma coisa. Por isso, ser actor é o melhor que me podia ter acontecido, ao longo destes 36 anos de trabalho fui tendo não várias vidas, mas vários simulacros de vida, portanto não tive muito tempo para me enjoar de mim.
Tal como o Vitangelo também teve crises de identidade?
Várias, como toda a gente. As da adolescência, as da jovem idade-adulta e tive uma enorme – e espero que definitiva (risos) – quando tinha 45 anos. Acho que todos nós, em determinado momento da vida, fazemos um balanço. Havia um cantor americano que dizia que só passamos a viver bem quando encaramos a própria morte. Quando temos 20, 30, 40 anos somos imortais e eu até aos 45 fui um adolescente, responsável, sim, mas adolescente. Quando cheguei a essa idade foi o grande momento, porque comecei a descentrar-me de mim próprio. Foi nessa altura que achei que devia estar menos centrado no meu trabalho de actor e comecei a dirigir, passar para o outro lado. Isso mudou a minha vida.
Ao que sei chegou a ser preso.
Sim, foi logo a seguir ao 25 de Abril… Fui tirar umas fotografias de umas gabardinas no Terreiro do Paço e tinha de ser ao nascer do Sol. O fotógrafo foi-me buscar a casa às quatro da manhã num Renault 4. Chegámos às piscinas dos Olivais e a carrinha foi-se abaixo. Abrimos o capô e estávamos a ver o que se passava, quando passou um padeiro. Não ligámos. Quando conseguimos pôr a carrinha a trabalhar apareceu a polícia de metralhadora. O padeiro tinha feito denúncia. Pediram-nos a documentação e o fotógrafo não tinha, porque o carro era emprestado. Não acreditaram. Abriram a mala e viram as gabardinas com etiquetas e as máquinas fotográficas do outro. Lá conseguimos negociar com eles e fiquei eu preso na esquadra da Encarnação, enquanto o meu amigo foi buscar os documentos e identificação. Felizmente nesse dia saiu uma revista chamada Mulher D’Hoje, onde estavam umas fotografias comigo, feitas por ele.
Lembra-se do seu primeiro trabalho?
Sim, foi aos 14 anos. Tive de ir trabalhar para ajudar a minha família, porque era uma família pobre. O ser actor nem sequer me passava pela cabeça nessa altura, porque a vida em Portugal era muito segmentada, portanto os actores e os artistas estavam num Olimpo que a mim não me passava pela cabeça vir algum dia parar. Só que dá-se o 25 de Abril e o País fica todo numa espécie de alucinação da igualdade em que tudo era possível. Se não tivesse havido o 25 de Abril hoje em dia eu era contabilista ou funcionário público.
Foi pela primeira vez pai aos 31 anos e depois, após os 50. É mais presente agora?
Não. Sempre fui muito presente na vida da minha filha mais velha, apesar de não viver com ela. Agora, é evidente que por essa diferença de 20 anos há mais disponibilidade. Hoje em dia organizo mais a minha vida tendo como prioridade estar com as minhas filhas.
Foi uma das figuras públicas que gravou um spot de rádio para a M80, apresentava-se como actor e dizia qualquer coisa como que trabalhava para proporcionar bem-estar às suas filhas…
Ser actor é uma coisa que aconteceu antes das minhas filhas nascerem e é muito mais do que uma profissão. Encontrei a maneira de viver certa para a minha personalidade. Ser actor, para mim, não é uma profissão, é uma dádiva, uma maneira de viver. Agora é evidente que tive momentos da minha vida que ser actor não me chegava, por exemplo, para sustentar a minha filha mais velha. Nesse início de carreira tive de fazer outras coisas, porque não tinha condições económicas. Não me passa pela cabeça deixar de trabalhar, porque, para além de tudo, também tenho de comprar os bifes, o leite, as escolas e todas essas coisas.
Laços de Sangue está a ser um sucesso e veio tirar público às novelas da TVI. Sente orgulho por esta conquista ter "um dedo" seu?
Não reivindico para mim a autoria do sucesso, mas que colaborei para ele e que colaborei para os primeiros sucessos da TVI há dez anos, isso é inegável. Ou seja, posso ser modesto, mas como diz a minha mãe há uma diferença entre ser-se bom e ser-se parvo. No início das novelas da TVI, quando se começou a ganhar às brasileiras, estava lá "um dedo" meu. Há coisas que faço por prazer e há coisas que faço por dever, porque os outros me reconhecem essa capacidade. Esta é uma delas.
Mas não é o que mais o agrada…
Não, de todo. O que gosto mesmo de fazer é representar e depois escrever. O resto, produção, direcção, a coordenação artística, faço porque me reconhecem alguma eficácia e porque tenho, talvez, alguma intuição para perceber as coisas antes delas começarem a acontecer. Por exemplo, no caso da SIC – e o Nuno Santos já o disse publicamente – esta é a terceira novela onde colaboro e de novela para novela ganhámos 200 mil espectadores. Vamos lá ver, modesto sim, parvo não.
É um monárquico convicto?
Não, sou um monárquico um bocado desgarrado. Entendo que a Monarquia seria mais adequada ao feitio dos portugueses do que a República, nesse sentido sou monárquico. Por outro lado, não o sou na medida em que não acredito que os Bragança possam ser a família representativa dessa nova etapa para Portugal. Tenho o maior respeito pelas pessoas em si, mas o desempenho da quarta dinastia dos Bragança ao longo da História foi de modo a eu não lhes reconhecer capacidade. Sou um monárquico sui generis.
Portanto,não se vê a prestar vassalagem ao duque de Bragança?
Não é por uma questão de vassalagem, nem é a pessoa em si. Praticamente não há nenhum rei Bragança que tenha sido brilhante. Foram todos de uma mediania que o País não precisa. Para isso, já chegam os Presidentes da República que temos tido.
Como é a sua relação com o público? É muito abordado?
Muito boa. Não posso dizer que seja muito abordado, mas quando ouvir uma figura pública a queixar-se do público português peço às pessoas para não acreditarem porque não é verdade. O público português é provavelmente o público mais próprio para lidar com figuras públicas.
Já teve de lidar com pessoas que por terem um sucesso já se acham estrelas?
Sabe que eu sou um tipo muito velho. Sou velho desde os meus quatro anos… As coisas para mim parecem ter sempre pouca novidade, parece que já vivi isto tudo. Portanto, quando aparece alguém convencido porque teve um êxito, passo sempre o que me ensinaram: o teatro é como o mar, deita fora o que não presta; e um actor leva dez anos a fazer-se. Nos primeiros dez anos só investe, nos dez seguintes já tem algum retorno e, passado esse tempo, se não investiu não recebe coisa alguma. Claro que já aconteceu aparecerem pessoas que não precisam de todo este tempo, porque assim que aparecem se percebe logo que são génios. Mas são pessoas muitos especiais. A maior parte de nós não é assim. A maior parte de nós passa pelo processo do mar.
Nunca se deslumbrou?
Não. O primeiro papel com visibilidade foi ao fim de oito anos. Mas como a produtora praticamente faliu, levaram dois anos para me pagar, portanto nunca tive tempo para me deslumbrar. Além disso, nunca me aconteceu um êxito de tal maneira retumbante que me deixasse a pensar que já sei tudo. É como se na minha vida profissional as coisas fossem acontecendo com uma regularidade que é boa, mas nunca de maneira a que me ache o melhor da minha rua.
Gosta de se ver?
Sim, agora já gosto de ver alguma coisa, porque já me consigo distanciar e olhar para mim como se não fosse eu, mas durante os primeiros 20 anos odiava tudo.
Em 1984 disse em entrevista à Nova Gente que apesar de não ter traumas de infância, sempre teve uma vida interior muito desequilibrada. Isto continua a fazer-lhe sentido?
Sim, por esta sensação e vontade que tenho sempre de recomeçar. A minha mãe diz: “Hás-de estar morto e a dizer, bem, esta morte não é bem assim.” Tenho essa inquietação. Sempre achei que as respostas para as coisas são pouco satisfatórias. Tenho um comportamento sereno, mas do ponto de vista interior estou sempre em ebulição. Não faço género quando digo que não sei o que vou fazer daqui por seis meses, tenho um medo terrível de ficar desempregado, quando aparentemente poderia não ter grandes motivos para pensar nisso. A vida interior desequilibrada é nesse sentido. Nunca consegui serenar as minhas ânsias. É por isso que aceito projectos que não sei se vão correr bem.
Vamos falar dos seus casamentos. É um homem de paixões fortes e duradouras?
Fortes sim, mas duradouras não se pode dizer que sejam… As paixões por definição não são duradouras. Para mim, a paixão tem sido sempre uma espécie de culminar dessa ideia de se atingir alguma transcendência. Viver apaixonado é viver permanentemente num estado de excepção que parece dar sentido à vida. Quando estamos apaixonados vivemos meio metro acima do chão.
Disse também numa outra entrevista, em 1996, que nenhuma mulher é para toda a vida e que isso as assusta…
Penso que isso tem a ver com lucidez, porque ninguém sabe quanto tempo dura o amor. Todos aceitamos que o amor, ou a paixão, acontece de um momento para o outro. Duas pessoas que não se conhecem de lado nenhum, encontram-se e apaixonam-se. Porque é que se aceita que o amor pode acontecer de um momento para o outro e não se aceita que pode acabar de um momento para o outro? É absurdo. É nesse sentido que não se pode garantir que é para toda a vida. Agora qual é a mulher que aceita isso? Acho que qualquer mulher lúcida aceita isso, porque pode ser ela a desistir.
Já está a trabalhar num novo livro.
Sim. O primeiro foi sobre Portugal e o segundo é precisamente sobre o amor. Se houver terceiro será sobre Deus e a morte.
Lembra-se do seu primeiro desgosto de amor?
Ah lembro-me, muito bem! Lembro-me muito mais dos desgostos do que das coisas boas. E tenho muitos (risos). Falam-me muito dos casamentos, mas nunca contabilizam o outro lado. Tinha nove, dez anos quando levei a minha primeira tampa e ainda hoje me lembro. Quero escrever estes três livros, porque essas são as grandes questões: o amor e a morte, depois o País e a religião.
A morte assusta-o?
A morte física acho que não, também não tenho uma relação de medo com o que possa vir a seguir. Tenho mais inquietação, curiosidade e vontade de querer perceber, do que propriamente medo. Mas espero ainda estar muito longe disso.
Pensa ser pai pela quarta vez?
Já nos passou isso pela cabeça, mas tudo indica que começo a ficar demasiado velho. A questão é a mesma, vou ter saúde nos próximos 25 anos para educar duas filhas pequenas e mais uma que viesse? Só me assusta por isso. Vou fazer 58 anos e penso até que ponto teria saúde e qualidade de vida. Se acontecer, cá estamos.
Gosta do seu papel de avô?
Gosto! Sobretudo dos almoços de domingo. São uma loucura. As brincadeiras da Sancha, com a Flor (neta) e a Violeta a tomar conta delas. É uma ternura que não se consegue explicar. É uma coisa que se sente e é muito bonito.
Texto: Carla Simone Costa; Fotos: Paulo Lopes; Maquilhagem e Cabelos: Ana Coelho; Produção: Marco António
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