Habituada aos palcos desde criança, Eunice Muñoz, de 82 anos, é uma das figuras incontornáveis da representação em Portugal. Distinguida com a Ordem de Sant'Iago da Espada pelo actual Presidente da República, é considerada por muitos como a mais importante actriz viva do nosso país. Em conversa com a VIP, percorreu 70 anos de palcos, que celebra no próximo mês de Novembro.
VIP – Está em ensaios para o seu mais recente trabalho, O Comboio da Madrugada, de Tennesse Williams, uma estreia no nosso país. Ainda sente a pressão de estrear uma peça?
Eunice Muñoz – Pressão não diria. Mas é sempre um estímulo interpretar um dramaturgo do nível de Tennesse Williams. Já o havia feito nos anos 60, na peça Verão e Fumo, no Teatro Villaret. De uma maneira geral, os personagens dos seus textos são sempre interpretadas por grandes actores, o que não deixa de ser um estímulo para mim. Talvez por isso esteja um pouco assustada, até porque é um papel que exige muito de mim. É uma mulher com problemas complicados. Está muito perdida, cheia de maus hábitos morais. São os seus dois últimos dias de vida… é um papel difícil, mas, para além de preocupada, estou, isso sim, entusiasmada.
Com quase sete décadas de palcos, ainda sente aquele nervoso miudinho antes da subida da cortina?
Sim, sinto. Esse tipo de excitação e receio está sempre presente. Mas quando a experiência é grande e já temos idade para sentir as coisas de outra forma, fica-se um pouco numa encruzilhada. Fico inquieta, é certo, mas os nervos não tomam conta de mim, até porque já tenho a experiência necessária para os saber controlar.
E quando tudo acaba, quando o pano desce pela última vez?
Nessas alturas, quando se é mais novo, fica-se muito desgostoso, porque a juventude é assim mesmo. No meu caso, porque já tenho mais uns anos disto, já não me acontece. Devia ser ao contrário, não é? Até porque me falta o tempo… Mas a verdade é que fico a pensar e a desejar que venha outra peça a seguir.
Começou cedo na representação. A influência familiar pesou muito na decisão de se dedicar a esta arte?
Sim, claro. Toda a minha família estava envolvida no teatro. Era difícil fugir. Estreei-me aos 13 anos no Teatro Nacional D. Maria II, o que me levará a completar, se Deus quiser, 70 anos de profissão no mês de Novembro.
Quando se estreou, em 1941, na peça Vendaval, alguma vez imaginou chegar aqui?
Não. Aos 13 anos nunca se pensa nisso. O peso familiar era tão grande que dificilmente me imaginaria noutro mundo. Mas, para ser sincera, admito que tinha uma grande paixão por Medicina. Nessa altura pensava muito nisso. Gostava mesmo de ter sido médica. Mas esta atracção pelo teatro foi-me retirando desse caminho.
Mesmo assim, chegou a fazer uma pausa na representação e dedicou-se a uma outra vida. Foi lojista.
Sim, precisava disso. Apesar de ter 23 anos (já tinha dez anos de profissão), queria fazer outras coisas e conhecer outros mundos. Precisava de ter gente diferente à minha volta e felizmente consegui-o, o que foi óptimo.
Começou pelo teatro, mas, ao contrário de outras actrizes de então, também enveredou pelo cinema…
Pois foi… E ainda bem que o fiz. Representei o Camões com 16 anos. Adorei conhecer o Leitão de Barros, um homem extremamente interessante. Durante todo este tempo, fiz oito filmes e todos eles me deram um prazer imenso.
Ao longo da sua carreira, muitas vezes se pensou que "era desta" que emigrava. Nunca teve essa tentação. Porquê?
Basicamente porque sempre fui sempre muito agarrada ao meu país, à minha gente. Nunca consegui cortar essa ligação e partir.
Embora fosse normal para a época, o facto de ter tido uma filha cedo também deve ter facilitado a decisão de ficar por cá…
Não foi por ela… Casei com 18 anos e a minha primeira filha nasceu quando tinha 19. Mas a verdade é que nunca me senti muito atraída pelo estrangeiro. Mesmo com a consciência de que tinha qualidade suficiente para alcançar uma carreira lá fora. Toda a minha vida, desde muito nova, salvo rarissímas excepções, as idas ao estrangeiro têm sido sempre em trabalho. Estive na Índia, em Macau, na América do Sul… Mas sempre que saio de cá, fico sempre com muitas saudades do meu país. Está tudo bem, é tudo muito interessante, mas quero sempre voltar. E quando o faço penso logo: “É aqui que me sinto bem…”.
Nem de férias sente essa necessidade?
Também não. Prefiro ir para as minhas termas, em S. Pedro do Sul. Faço-o há 18 anos… E como vou sempre na mesma altura, já tenho lá uns amigos que me proporcionam uma estadia muito agradável.
Voltando à vida no teatro… sabendo-se que era oriunda de uma família ligada à área, presume-se que o seu círculo de amigos tenha estado sempre relacionado com as artes…
É verdade. Não obrigatoriamente do teatro, mas os meus grandes amigos foram sempre do campo artístico. Fossem eles pintores, escultores ou poetas.
Casou três vezes, a primeira das quais bastante nova, aos 18 anos, como já referiu. Sempre foi uma mulher de paixões?
Fui sempre uma mulher muito apaixonada. Os meus três maridos foram grande paixões da minha vida. Mas a verdade é que fui sempre muito liberal nas minhas atitudes. Para a época talvez fosse um pouco demais, até porque dava muito nas vistas. Mas estive sempre muito bem acompanhada, verdade seja dita. Estava rodeada de pessoas muito pouco preocupadas com os velhos preconceitos.
Amigos esses que ainda mantém…
É aquilo que mais me dói ao envelhecer, perder esses pontos de apoio importantes que são os amigos. Fatalmente comigo também acontece ir perdendo essas bases da minha sustentação.
Um desses amigos, o Ruy de Carvalho, foi, por diversas vezes, apontado pelo público como seu marido. Ele próprio conta isso…
(Risos) Pois é. O Ruy… Trabalhámos tantas vezes juntos e as pessoas acabaram por se habituar. Talvez por isso, volta e meia alguém nos confundia como marido e mulher.
Nunca teve problemas com isso? Quer dizer, era casada, ele também…
Não, nunca me trouxe problemas nenhuns, até porque para além de sermos realmente amigos há muitos anos, sempre fui também, aliás, muito amiga da mulher dele. Tínhamos uma relação muito saudável e fraterna. E continuamos a ter, graças a Deus.
Voltemos à representação. Andou pelo teatro, pelo cinema, mas a sua estreia nas novelas é igualmente inesquecível…
Pois, essa aventura começou logo muito bem, com A Banqueira do Povo, uma novela que foi um êxito enorme, muito boa, feita por um homem que sabia muito, o Walter Avancini, que nos dirigia muito impecavelmente.
Ainda hoje há quem diga que é uma das melhores novelas portuguesas de sempre.
Pois é… Há um amigo meu que diz estar quase pronto a afirmar que é "a melhor". Tinha um elenco de actores e actrizes muito bom. Foi muito agradável.
Foi nesse projecto que contracenou com o seu grande amigo Diogo Infante, de quem, reparo, tem uma foto aqui no seu camarim.
Pois tenho. Dele, da minha querida mãe, do grande mestre Avillez, das minhas assistentes e da minha querida neta, a Lídia.
Neta essa que vai fazer a estreia no teatro ao seu lado, nesta peça de Tennesse Williams, não é?
É uma autêntica passagem de testemunho… Ela é muito vocacionada, tenho muita fé que venha a ter uma boa carreira. Enternece-me imenso…
Sempre foi uma neta muito próxima de si.
Pois é. Teve uma criação muito junto a mim. Dá-me imensa alegria. Ainda por cima tem a escola do mestre Avillez. Vamos ver como corre… Pelo teatro têm passado alguns dos meus filhos, a Maria, a Dora… mas foi isso mesmo, uma passagem. Não foi o futuro delas. A Lídia surge agora e fico muito feliz por ela ter qualidade e querer fazer uma carreira para seguir os meus passos. E quando eu não estiver aqui, estarei com certeza noutro lado muito feliz pelo caminho que ela está a desbravar.
Alguma vez fez força para que os seus filhos ou netos seguissem os seus passos?
Não, nunca os influenciei, nunca tive essa intenção. Mas só a minha presença já era uma influência enorme para eles… (risos).
Há uma nova geração de actores a surgir no meio. Como é que reage, mesmo sabendo que muitos deles vêm de áreas bem distintas da representação?
Fico muito contente. Eles são o futuro! Não posso deixar de ficar satisfeita. São eles que vão continuar o teatro nacional. Todos nós devíamos ficar contentes com tamanho empenho. Desde que tenham a vocação necessária e estudem para isso.
Não foi o seu caso, com certeza, mas em tempos idos os pais não gostavam de ver os filhos enveredar pela representação. Hoje não é bem assim.
Sim, hoje em dia parece-me que é mais uma preocupação material, no sentido de eles ficarem desempregados, sem uma companhia onde trabalhar.
A vida de actriz não é fácil, muito menos nos tempo da flexibilidade que hoje vivemos.
A precariedade dos jovens artistas hoje é enorme. Vive-se um tempo bastante difícil.
Como é que se combate isso?
A resposta está sempre na necessidade, cada vez maior, que temos de nos cultivarmos. Só assim poderemos garantir que continuarão a existir trabalhos para os mais novos.
A Eunice Muñoz é, reconhecidamente, uma das maiores actrizes do nosso país. Lida bem como este sucesso, com as distinções públicas?
Não me envaidece, nem quero pensar nisso. Só quero fazer o melhor trabalho que for capaz até ao fim dos meus dias. Até ter capacidade. Claro que fico eternamente grata a todos os que me agraciaram com essas distinções, até porque é um reconhecimento do meu trabalho. Mas não quero que isso consista num tropeção para mim.
Já fez tantas peças, tantos filmes, tantas novelas… Ainda há, aos 82 anos, alguma coisa em especial que gostasse de concretizar?
Não. Já fiz muita coisa que me preencheu e agora só quero mesmo trabalhar. Felizmente tenho já mais três projectos a seguir a esta peça e isso deixa-me muito contente.
É isso que a deixa realizada?
Sim. Sou mesmo muito feliz quando estou a trabalhar.
De entre todos os seus trabalhos, há, com certeza, muitos aos quais ainda hoje reconhece terem-na preenchido mais. Quais foram?
Sim, de facto foram muitos os que me enriqueceram. Mas a Mãe Coragem é um marco no meu trabalho. Bem como a Joana D'Arc, que fiz quando tinha 27 anos. São dois pontos importantíssimos na minha carreira. Pelo meio, fiz inúmeras coisas que nunca vou esquecer, mas essas duas…
E há alguma coisa que gostasse de apagar do currículo?
Nem por isso. Mesmo as coisas que fiz antes do regresso, aos 27 anos, com a Joana D'Arc, e que eram comédias com um interesse relativo, serviram para me dar um conhecimento e uma experiência únicos.
Durante toda a sua carreira, trabalhou com imensa gente. Todas pessoas sobre as quais se pode orgulhar…
Pois, nisso tive sorte. Dividi o palco com grandes actores e aprendi muito com eles. Fiz o conservatório com mestres como o Alves da Cunha, a Maria Matos, o Assis Pacheco… grande gente dessas épocas. A minha primeira mestre foi uma grande actriz, uma grande mulher, a Maria Rey Colaço, que me ensinou mesmo muito. Depois fui dirigida por Palmira Bastos, uma mulher que me marcou igualmente bastante.
O que é que ainda a faz dedicar-se à profissão? Quer dizer, podia ter, aos 82 anos, uma vida mais calma, sem o stress das estreias, por exemplo.
Ah isso… Isto é uma paixão. O fascínio de “fazer de outros” sempre me cativou. Vestir outras peles, que não são nossas, e tentar interpretá-las. Acaba por ser muito complexo, mas é uma premissa simples. E é a minha vida.
Há cerca de dois anos teve um grave problema de saúde, mas pouco tempo depois estava novamente num palco. Agora, em finais de 2010 voltou a ser atingida pela enfermidade, mas dias depois estava no local das gravações da novela que protagoniza. Onde é que vai buscar essa força?
A Deus. É ele que me ajuda. É só a Deus que tenho que dar graças por essa vontade férrea. Felizmente estou recuperada, mas o nosso trabalho é muito cruel nesse aspecto e não há cá tempo para descanso. Deus deu-me realmente uma grande resistência, uma energia que me tem servido toda a vida.
Texto: Miguel Cardoso; Fotos: Impala e Luís Baltasar; Produção: Manuela Costa; Maquilhagem e cabelo: Ana Coelho, com produtos Maybelline e L'Oréal Professionel
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