A entrevista começa com um pedido de desculpas da entrevistada, por o seu português poder não ser muito perceptível. Recusa, contudo, a sugestão de a fazer em inglês, porque tem "de praticar", diz, com um sorriso tímido e ainda meio nervoso, por não estar habituada a dar entrevistas. Ao longo da conversa Zenilda Gusmão – filha de um pai que a guerra em Timor levou para as montanhas durante anos – emociona-se várias vezes ao falar desses tempos. Pára, recompõem-se e conta como foi crescer sem a presença dessa figura masculina, na ânsia de notícias de um homem que só "conheceu" verdadeiramente aos 18 anos, quando o foi visitar à cadeia. A entrevista termina com um convite e uma promessa: irmos conhecer Timor-Leste e entrevistar Xanana Gusmão!
VIP – Como é ser filha de um herói?
Zenilda Gusmão – (Risos) As pessoas pensam que ser filha de um herói é uma coisa do outro mundo, mas não é bem assim. Passámos por muitas coisas por ele ser herói. Tem vantagens e desvantagens. Claro que tenho orgulho por o meu pai ter lutado para libertar o nosso país e retirar o nosso povo do sofrimento. Mas sim, é um orgulho muito grande.
O que lhe dizem quando a abordam na rua?
"A filha do Xanana"(risos). Abordam-me sempre para falar bem do meu pai. E eu fico ainda mais orgulhosa. Contam como ajudaram a nossa luta e histórias dele, mesmo sem o conhecerem pessoalmente.
Mas o apelido Gusmão também trouxe coisas más.
Sim, especialmente da parte dos indonésios, não podíamos ter a nossa liberdade. Parecia que estávamos prisioneiros dentro do nosso país, só por ter este apelido. Na escola chamavam-me "filha de comunista". Como era muito nova não percebia bem e deixava passar.
O seu pai teve de fugir para as montanhas quando ainda era muito pequena. Nunca teve contacto com ele.
Fiz um ano de idade em Outubro e os indonésios invadiram Timor em Dezembro, portanto tinha um ano e dois meses quando o meu pai foi embora. Durante 18 anos não tivemos contacto com ele.
Mas iam tendo notícias, sabendo se estava bem?
Sim, amigos traziam cartas ou gravações para a minha mãe. Conhecia-o só por voz e fotografias e, mesmo assim, muito pouco. Tenho pena de não ter conhecido o meu pai.
Como recorda o momento em que o viu na prisão?
Tinha 18 anos quando finalmente o conheci. Nem queria acreditar, porque o que esperávamos era vê-lo morto. Vê-lo vivo, ainda que na prisão, deixou-me muito contente. Estava preso, mas vivo e, de dois em dois anos, podíamos ir visitá-lo.
De dois em dois anos?
Sim. Um ano era para a família, mulher e filhos e o outro para pais e irmãos.
Como foi o retomar dessa relação pai/filha?
Para mim foi muito difícil. O meu irmão tinha quatro anos quando o meu pai foi para as montanhas, portanto para ele foi mais fácil. Agora para mim foi muito difícil porque não o conhecia.
Era quase um estranho?
Sim. Chamava pai, mas era um estranho. Mas foi muito bom. Eu já tinha 18 anos e ele tratava-me como uma criança (risos). Precisávamos os dois disso. Foi muito engraçado.
Quando o seu pai foi solto, formou uma nova família [n.r.: Xanana Gusmão casou, em 2000, com Kirsty Sword e tem três filhos, Alexandre Gusmão, Kay Olok Gusmão e Daniel Gusmão]. Como é que encararam isso?
Encarámos isso com naturalidade, mas claro que quando, às vezes, o vejo com os meus irmãos, existe um bocadinho de ciúme, porque passam mais tempo com ele. No entanto, o meu pai não faz diferença entre os filhos. Tem sempre tempo para nós, está sempre disponível.
Como é Xanana Gusmão enquanto pai?
Muito calminho. Não é assim tão duro (risos). É mesmo o homem da família. É carinhoso, atencioso, divertido.
Profissionalmente também está ligada ao seu país.
Sim, faço parte de uma associação de mulheres empresárias timorenses, para as ajudar, especialmente as das zonas rurais, que têm muito potencial e são criativas. Neste momento o nosso Governo está a dar muito apoio às mulheres timorenses. É uma ONG, existe desde 2008, sou directora da parte do turismo e não ganho. Sei que Timor tem muito potencial nessa área e gostava de ajudar a desenvolvê-la.
Como sente o carinho dos portugueses?
Mesmo não conhecendo Portugal ou os portugueses, sempre ouvimos falar muito desse apoio. Quando cá cheguei senti muito isso. Muitas pessoas, quando sabiam quem eu era vinham ter comigo, contar-me o que tinham feito. Foi um surpresa muito grande conhecer este carinho do povo português.
O seu namorado é português. Onde se conheceram?
Em Timor… O Bruno pensava que eu era cubana. Gosto de portugueses, são ciumentos, mas bons (risos).
Quando saiu de Timor foi viver para a Austrália.
Sim, mais por causa da minha mãe. Ela tem família na Austrália e em Portugal e era para cá que queria vir, mas os indonésios não deixaram. Depois, através da Cruz Vermelha Internacional, conseguimos sair para a Austrália.
Qual é a sensação de não ser dona da sua vida?
Foi muito difícil. Eu era miúda, não senti muito, mas a minha mãe estava sozinha, lutou sozinha… foi muito difícil. E soubemos que íamos sair dali apenas 24 horas antes. O meu irmão estava mais crescido, os indonésios andavam sempre atrás de nós.
Como foi voltar a Timor depois da independência?
Ainda havia destruição, casas queimadas, mas não me fez diferença. Só queria voltar à minha terra. Nunca, nunca, vou ficar longe do meus país.
Como está Timor agora?
Está óptimo, diferente, temos sítios bonitos que não conhecia porque não podia sair de Díli. Agora é que estou a descobrir o meu país. Tem praias e ilhas lindas, sítios virgens…
Texto: Carla Simone Costa; Fotos: Paulo Lopes; Maquilhagem e cabelos: Tita Costa com produtos Maybeline e L’Oréal Professionel; Produção: Romão Correia; Agradecimentos: Hotel Cascais Miragem; Musgo; Loja Amarela; Anna
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