Mariana Palavra
MARIANA PALAVRA regressa a Portugal antes de continuar a missão no Haiti

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“Tenho estado muito concentrada no trabalho, para não pensar muito na perda”, diz a portuguesa que integra a missão de paz da ONU
Voltou a Portugal porque as Nações Unidas deram ordens para que os seus funcionários no Haiti se afastassem da “situação de stress” que têm vivido.

Sex, 19/02/2010 - 0:00

Voltou a Portugal porque as Nações Unidas deram ordens para que os seus funcionários no Haiti se afastassem da "situação de stress" que têm vivido. Um mês depois do sismo, Mariana Palavra, a portuguesa da missão da paz da ONU, esteve no funeral de um amigo, vítima do terramoto, na Alemanha, e voltou a abraçar a família em Portugal. Uma semana depois, já está de malas aviadas para regressar ao terreno. Leva uma tenda e um colchão insuflável, para garantir noites um pouco mais confortáveis.

Com este distanciamento, como está o Haiti agora?
A distribuição de água e alimentos processa-se de forma mais regular. Agora são distribuídos às mulheres, porque há estudos que comprovam que elas são menos violentas, portanto acontece tudo de forma mais pacífica.

Um mês depois, os haitianos já se "recompuseram"?
Desde o início, pela forma de ser dos haitianos, havia uma resignação impressionante, sobretudo para os estrangeiros, que tinham vivido o mesmo. Nota-se que quem pode já voltou à rua para os seus negócios informais. Quando as agências de transferência de dinheiro abriram, cerca de duas semanas após o terramoto, alguns receberam dinheiro de familiares, sobretudo dos Estados Unidos e abriram o seu pequeno negócio de venda de bens de primeira necessidade. Não é que a vida tenha voltado ao normal, mas já há umas tentativas.

E a violência de que tanto se fala?
Há casos isolados de violência, mas sempre existiram, e são limitados a duas ou três zonas que já eram complicadas anteriormente.

Mas então o que é que a impede de regressar à casa onde vivia, já que não foi destruída pelo sismo?
Questões logísticas, porque agora a base da ONU onde estou a trabalhar é bastante mais longe de minha casa e a determinada altura não tinha transporte para, todos os dias, chegar muito cedo à base e sair já depois do recolher obrigatório. Como moro sozinha e ainda tenho algum receio prefiro não arriscar e ficar com os colegas. Para além disso, a missão disse que as pessoas tinham de se manter na base até serem analisadas as falhas e as zonas de risco, caso haja novos sismos.

Como é que foi recebida em Portugal pelos familiares e amigos?
Eu já estou fora há alguns anos, portanto cada vez que vinha cá já me iam buscar em grande número, mas não houve grande alarido, até porque lá íamos falando todos os dias.

Não houve uma necessidade de lhe tocar?
Eu não sou muito de chorar e abraçar, e eles também não. Uma tia minha levou-me uma flor amarela, porque eu gosto muito de amarelo, mas pelos feitios que temos, não foi nada do outro mundo. Acredito que para eles tenha sido uma chegada especial. Da minha parte, também, apesar de eu estar muito dividida, porque todos os dias penso no Haiti, todos os dias sonho com o Haiti. Não são pesadelos,  mas são sonhos das últimas semanas, da rádio, de dormir nas tendas, penso a toda a hora neles, se está tudo a correr bem, o que está a acontecer.

Se pudesse, tinha ficado lá?
Eu estava a viver aquilo a mil, há essa necessidade. Agora confesso que nos últimos tempos já estava muito cansada, já não estava a produzir. Estamos a dormir mal, a trabalhar muito, portanto fisicamente sentia que precisava de descansar, ainda que mentalmente tenhamos a ideia de que sair do país é quase abandoná-los.

O que vai fazer quando voltar?
Vou regressar à rádio, que está cada vez mais organizada, estamos a emitir 24 horas por dia, temos cerca de 40 jornalistas e estarei a coordenar a emissão numa rádio que agora chamamos de rádio humanitária.

Esta ida à Alemanha é a necessidade de se despedir de um colega de forma mais formal?
Era um dos meus melhores amigos. Foi achar que precisava de parar e começar a pensar nisso. Tenho estado muito concentrada no trabalho, para não pensar muito na perda. Ir à Alemanha significou começar a pensar nisso, despedir-me dele, despedir-me de todos os outros, através dele. Tive também a necessidade de criar relações com a família dele, a noiva, para manter aquela amizade viva através dos familiares. A única forma de o fazer era estar ali, no funeral.

Só agora, um mês depois, consegue começar a falar dos amigos que perdeu…
Sim, eu comecei por falar, no meu blogue, de algumas pessoas próximas de mim profissionalmente, mas não dos amigos com quem jantava todos os dias ou ia à praia ao fim de semana, esses eram a minha família no Haiti. Falei de um jornalista da minha equipa e do técnico do nosso programa, também por saber que, como são haitianos, serão mais facilmente esquecidos, terão menos homenagens, terão menos atenção. E ao falar deles estou a falar de tantos outros haitianos.

Como reagiu a sua família ao saber que vai regressar?
Já me conhecem. Eu acredito que eles não esperavam outra coisa. Viram que, mentalmente, estava a aguentar-me, e acho que assumimos todos isso.

Acha que vai conseguir ultrapassar isto?
Não sei. Ainda é muito cedo para pensar nisso. Muita gente me pergunta se tenho noção de que sou uma sobrevivente, de que tive sorte. Eu tive noção, num primeiro momento, de que tinha perdido muito, de que o Haiti tinha perdido muito. Se isto é uma nova oportunidade e se agora vou fazer tudo de forma diferente? Não sei, se calhar até vou, mas agora ainda estou a viver demasiado aquilo. Não sei como a mente e o corpo vão reagir ao regresso a uma certa normalidade. Se depois vir que não consigo lidar com a situação recomeço tudo de novo. Se o Haiti está a recomeçar tudo de novo, o facto de eu ter de recomeçar do zero não é nada.

Texto: Elizabete Agostinho; Fotos: Nuno Moreira

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